Título em
português: Tudo Sobre Minha Mãe
Realizador: Pedro Almodóvar
Ano: 1999
País: Espanha
Argumento:
Pedro Almodóvar
Fotografia:
Affonso Beato
Elenco
principal: Cecilia Roth, Marisa Paredes, Antonia San Juan, Penélope Cruz,
Candela Peña, Fernando Fernán Gomez, Toni Cantó
Duração: 1
hora e 41 minutos
O
refinamento temático do cineasta em relação à primeira fase de sua carreira
veio com “A Flor do Meu Segredo” (1995)
e “Em Carne Viva” (1997), o que coloca “Tudo Sobre Minha Mãe” no caminho
do amadurecimento definitivo do director, entregando a sua melhor obra até este
momento. A história acompanha Manuela (Cecilia Roth), que vê seu único filho Estebán (Eloy Azorín) morrer no dia em que completava 17 anos, num
acidente que recria em parte uma das famosas cenas de “Opening Night” (John
Cassavetes, 1977). Arrasada, Manuela vai a Barcelona à procura do pai de seu
filho, uma travesti chamada Lola. Aparece então uma velha amiga, Agrado (Antonia San
Juan), também travesti, e uma jovem
freira chamada Rosa (Penélope Cruz) que irão marcar o quotidiano
de Manuela na cidade da qual fugiu e para a qual retorna a fim de se encontrar.
Se compararmos este filme aos outros do director,
chegamos à conclusão de que assistimos a uma obra mais plácida e ao mesmo
tempo mais profunda, mesmo que os temas recorrentes de sua filmografia
apareçam, inclusive o humor, que toma a forma de um desalento íntimo, como se
fosse um riso culpado de existir diante de tanta miséria e sofrimento em redor.
De imediato, o espectador consegue perceber ligações edípicas na relação
entre Manuela e Estabán, marcada, com o passar dos minutos, pela fascinação do
garoto pela mãe, a quem admira em diferentes níveis — mesmo por aquilo que ela
não é: uma actriz. Essa nuance edípica aos poucos dá lugar a linhas
interessantes de perversões e destrutividade.
As
‘pequenas mortes’ na interacção entre as pessoas não são o único caso de
problemas demasiadamente humanos no filme. Perceba que o roteiro de
Almodóvar vai marcando o território da tragédia diante de conflitos que não
percebemos no começo, como a relação de título e depois de impacto cénico
com o excelente “Eva” (All About Eve / Tudo Sobre Eva, no original), a peça
(e em certa medida, também o filme dirigido
Elia Kazan) “Um Eléctrico Chamado Desejo”, de Tennessee
Williams ou o livro “Música Para Camaleões”,
de Truman Capote. Em cenas familiares mergulhadas em ambiente sanguíneo —
cor-símbolo fundamental do princípio da vida explorada com grande beleza e
inteligência pelo fotógrafo brasileiro Affonso Beato –, vemos o elemento
trágico se formar, preparando-se para tomar conta do enredo após o acidente que
faz Manuela mudar de vida e procurar [romper? recuperar? superar? ficar em
paz?] com o passado.
Note,
porém, que a direcção de Almodóvar faz a adequação de tom para cada fase, mas
mantém o ritmo de valorização e destaque da mulher, com toda a delicadeza
e fúria necessárias para tratar questões de género, usado como motor do
melodrama urbano em um casamento mais que bem-vindo no filme e
executado quase com perfeição, misturando os estilos formais e as temáticas
femininas de George Cukor, Douglas Sirk e Rainer Werner Fassbinder. Deste último, há um verdadeiro mergulho de Almodóvar em
duas obras específicas onde o desejo, a ausência, a sublimação e o desespero
andam de mãos dadas com inúmeras variações sexuais, “As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant” (1972), quando ele trabalha com as
mulheres cisgénero de diversas sexualidades e “In einem Jahr mit 13 Monden” (1978),
quando ele trabalha com as mulheres transexuais e com as travestis, também
de diversas sexualidades.
O
grande encanto do roteiro é que, tendo plantado a tragédia desde o início e
colocando a matriarca ferida e sozinha em busca de algo para expiar — a dor da
perda não é o único elemento em cena –, toda a trajectória acaba desaguando,
quase sem querer, numa ode à vida. O roteiro, porém, não nos traz isso
como lição de moral ou forçosa mudança de ponto de vista no melhor estilo “aprender com
os erros“. Nada disso. Saudade e tristeza são omnipresentes,
mas não dominam o tom da película. Manuela, a mãe sobre a qual nós descobrimos
tudo, passa por fases onde se conhece melhor e redescobre as coisas.
Durante esse trajecto, existe um certo “acostumar-se rápido demais”,
principalmente no contacto dela com Huma Rojo, mas nada que impeça o público de
entender a força de sua personalidade e o contacto dela com os muitos lados da
feminilidade (sua e das outras que a rodeiam).
O
carinho e a delicadeza com que o director nos apresenta Lola
(personagem muito bem interpretado por Toni Cantó), fora do estereótipo ou da demonização que se
esperaria para alguém que, muitíssimo bem definido por Manuela, “é uma epidemia“, dá o tom da recta
final de “Tudo Sobre Minha Mãe”.
O amor à vida e às pessoas, o perdão — mas não o esquecimento — o
reencontro e a partida são partes da teia de qualquer relação humana,
importando, ao final, o que se vive e os momentos partilhados com alguém.
Poucas vezes um filme com este tom e com tamanha tragédia em cena teve um final
com esta mensagem. Mas vejam, não poderia ser de outra forma. Materno desde o
título, a longa-metragem destaca o cuidado, o renovo, o tempo e a nova vida
(literal ou simbólica) que a todos mudam, uma gestação de amor complexo e
instigante que rendeu a Almodóvar o prémio de Melhor Diretor e do Júri
Ecuménico (!) em Cannes, o Globo de Ouro de Filme Estrangeiro, o Oscar de
Melhor Filme Estrangeiro e mais dezenas de outros prémios em festivais ao redor
do mundo. Não é para menos. “Tudo Sobre Minha Mãe” é
um marco do cinema e a inscrição final de Almodóvar no panteão dos mestres.
Luiz Santiago
Blog Plano Critico