segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Todo sobre mi madre de Pedro Almodóvar

 


Título em português: Tudo Sobre Minha Mãe

Realizador: Pedro Almodóvar

Ano: 1999

País: Espanha

Argumento: Pedro Almodóvar

Fotografia: Affonso Beato

Elenco principal: Cecilia Roth, Marisa Paredes, Antonia San Juan, Penélope Cruz, Candela Peña, Fernando Fernán Gomez, Toni Cantó

Duração: 1 hora e 41 minutos

O refinamento temático do cineasta em relação à primeira fase de sua carreira veio com “A Flor do Meu Segredo (1995) e “Em Carne Viva” (1997), o que coloca “Tudo Sobre Minha Mãe” no caminho do amadurecimento definitivo do director, entregando a sua melhor obra até este momento. A história acompanha Manuela (Cecilia Roth), que vê seu único filho Estebán (Eloy Azorín) morrer no dia em que completava 17 anos, num acidente que recria em parte uma das famosas cenas de “Opening Night” (John Cassavetes, 1977). Arrasada, Manuela vai a Barcelona à procura do pai de seu filho, uma travesti chamada Lola. Aparece então uma velha amiga, Agrado (Antonia San Juan), também travesti, e uma jovem freira chamada Rosa (Penélope Cruz) que irão marcar o quotidiano de Manuela na cidade da qual fugiu e para a qual retorna a fim de se encontrar.

 

Se compararmos este filme aos outros do director, chegamos à conclusão de que assistimos a uma obra mais plácida e ao mesmo tempo mais profunda, mesmo que os temas recorrentes de sua filmografia apareçam, inclusive o humor, que toma a forma de um desalento íntimo, como se fosse um riso culpado de existir diante de tanta miséria e sofrimento em redor. De imediato, o espectador consegue perceber ligações edípicas na relação entre Manuela e Estabán, marcada, com o passar dos minutos, pela fascinação do garoto pela mãe, a quem admira em diferentes níveis — mesmo por aquilo que ela não é: uma actriz. Essa nuance edípica aos poucos dá lugar a linhas interessantes de perversões e destrutividade.

As ‘pequenas mortes’ na interacção entre as pessoas não são o único caso de problemas demasiadamente humanos no filme. Perceba que o roteiro de Almodóvar vai marcando o território da tragédia diante de conflitos que não percebemos no começo, como a relação de título e depois de impacto cénico com o excelente “Eva” (All About Eve / Tudo Sobre Eva, no original), a peça (e em certa medida, também o filme dirigido Elia Kazan) “Um Eléctrico Chamado Desejo”, de Tennessee Williams ou o livro “Música Para Camaleões”, de Truman Capote. Em cenas familiares mergulhadas em ambiente sanguíneo — cor-símbolo fundamental do princípio da vida explorada com grande beleza e inteligência pelo fotógrafo brasileiro Affonso Beato –, vemos o elemento trágico se formar, preparando-se para tomar conta do enredo após o acidente que faz Manuela mudar de vida e procurar [romper? recuperar? superar? ficar em paz?] com o passado.

 

Note, porém, que a direcção de Almodóvar faz a adequação de tom para cada fase, mas mantém o ritmo de valorização e destaque da mulher, com toda a delicadeza e fúria necessárias para tratar questões de género, usado como motor do melodrama urbano em um casamento mais que bem-vindo no filme e executado quase com perfeição, misturando os estilos formais e as temáticas femininas de George CukorDouglas Sirk e Rainer Werner Fassbinder. Deste último, há um verdadeiro mergulho de Almodóvar em duas obras específicas onde o desejo, a ausência, a sublimação e o desespero andam de mãos dadas com inúmeras variações sexuais, “As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant (1972), quando ele trabalha com as mulheres cisgénero de diversas sexualidades e “In einem Jahr mit 13 Monden” (1978), quando ele trabalha com as mulheres transexuais e com as travestis, também de diversas sexualidades.

 

O grande encanto do roteiro é que, tendo plantado a tragédia desde o início e colocando a matriarca ferida e sozinha em busca de algo para expiar — a dor da perda não é o único elemento em cena –, toda a trajectória acaba desaguando, quase sem querer, numa ode à vida. O roteiro, porém, não nos traz isso como lição de moral ou forçosa mudança de ponto de vista no melhor estilo “aprender com os erros“. Nada disso. Saudade e tristeza são omnipresentes, mas não dominam o tom da película. Manuela, a mãe sobre a qual nós descobrimos tudo, passa por fases onde se conhece melhor e redescobre as coisas. Durante esse trajecto, existe um certo “acostumar-se rápido demais”, principalmente no contacto dela com Huma Rojo, mas nada que impeça o público de entender a força de sua personalidade e o contacto dela com os muitos lados da feminilidade (sua e das outras que a rodeiam).

 

O carinho e a delicadeza com que o director nos apresenta Lola (personagem muito bem interpretado por Toni Cantó), fora do estereótipo ou da demonização que se esperaria para alguém que, muitíssimo bem definido por Manuela, “é uma epidemia“, dá o tom da recta final de “Tudo Sobre Minha Mãe”. O amor à vida e às pessoas, o perdão — mas não o esquecimento — o reencontro e a partida são partes da teia de qualquer relação humana, importando, ao final, o que se vive e os momentos partilhados com alguém. Poucas vezes um filme com este tom e com tamanha tragédia em cena teve um final com esta mensagem. Mas vejam, não poderia ser de outra forma. Materno desde o título, a longa-metragem destaca o cuidado, o renovo, o tempo e a nova vida (literal ou simbólica) que a todos mudam, uma gestação de amor complexo e instigante que rendeu a Almodóvar o prémio de Melhor Diretor e do Júri Ecuménico (!) em Cannes, o Globo de Ouro de Filme Estrangeiro, o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e mais dezenas de outros prémios em festivais ao redor do mundo. Não é para menos. “Tudo Sobre Minha Mãe” é um marco do cinema e a inscrição final de Almodóvar no panteão dos mestres.

 

Luiz Santiago

Blog Plano Critico


terça-feira, 7 de novembro de 2023

À bout de souffle de Jean-Luc Godard

 


Título em português: O Acossado

Realizador:  Jean-Luc Godard

Ano: 1960

País: França

Argumento: Jean-Luc Godard

Fotografia: Raoul Coutard

Elenco principal: Jean-Paul Belmondo, Jean Seberg, Daniel Boulanger, Henri-François Huet

Duração: 1 hora e 29 minutos

 

Título lendário, “À Bout de Souffle” é um daqueles (poucos) filmes, como “The Birth of a Nation” ou “Citizen Kane”, que podem servir para delimitar tempos e períodos diferentes na história do cinema. A paisagem altera-se, há um tempo antes e um tempo depois – mesmo que a referência aos filmes acabe, no fundo, por condensar apenas a decisiva importância de quem os fez: houve um tempo antes de Griffith e um tempo depois de Griffith, um tempo antes de Welles e um tempo depois de Welles, a partir de “À Bout de Souffle” pôde-se falar, com igual pertinência, num tempo antes de Godard e num tempo depois de Godard.

Nada disto, claro, aconteceu por magia, nem “Birth of a Nation” nasceu do nada nem mesmo “Citizen Kane”, e ainda menos – será talvez o caso mais específico – “À Bout de Souffle”. De “onde” ele vem, quer em termos diacrónicos quer em termos sincrónicos, sabemos bem. Também por isso, a importância histórica do filme tem muito a ver com as suas virtudes de “condensação”: espécie de explosão de um cinema doravante moderno (mais do que sua invenção), e espécie de bandeira de todo um movimento, a “nouvelle vague” (mais do que seu início), “À Bout de Souffle” tem uma história, nasce dessa história, existe por causa dela. Ao mesmo tempo, poucos filmes terão feito coincidir, desta maneira, a sua própria história com a História. A obsessão de Godard com a palavra “história” é antiga e nunca pôde ser reduzida a jogos de palavras. E “À Bout de Souffle” explica, tanto quanto é explicado por elas, algumas célebres afirmações de Godard que serviram para caracterizar uma série de traços essenciais da “nouvelle vague” (e que de uma maneira ou de outra nunca deixaram de percorrer a sua obra futura). Eram eles, os cineastas da “nouvelle vague”, a “primeira geração a saber que Griffith tinha existido”, eram eles a reivindicarem para si “a obrigação de fazer os filmes que a história do cinema exigia”.

 Pode parecer um paradoxo que a geração que reclamava ser a primeira a saber que Griffith tinha existido acabasse por gerar um filme assim, que tão ostensivamente, ao ponto de na prática as dinamitar, passa por cima das regras da gramática clássica derivada do cinema griffithiano. O primeiro sinal do carácter libertário de “À Bout de Souffle” tem mesmo a ver com isso, com o facto de nele tudo se passar como se, afinal, Griffith nunca tivesse existido. Será verdadeiramente um paradoxo? Se calhar não: se calhar, saber que Griffith tinha existido equivale um pouco a saber o “porquê das coisas”, equivale a uma espécie de desmitificação. É negar a “magia” do cinema, é reconhecer o carácter convencional dos seus procedimentos e das suas técnicas – é saber que não tem que se filmar “assim” apenas porque é “assim” que se filma. “À Bout de Souffle”, para todos os efeitos, ficou como o momento em que esta consciência melhor e mais claramente se expôs. E aí sim, faz verdadeiro sentido falar das suas propriedades emblemáticas, que fizeram dele um “filme-bandeira”, não só da “nouvelle vague” como da chamada modernidade cinematográfica.

Entre as consequências dessa tomada de consciência está uma questão muito particular, que nunca deixou de incidir sobre a obra de Godard e que é porventura nuclear em qualquer tentativa de definição do cinema moderno: a inocência. Ou melhor, a perda dela. ”À Bout de Souffle”, em vários sentidos, é um filme que parte já para lá da inocência, um filme que tem a exacta noção de que trabalha já sobre qualquer coisa de irremediavelmente perdido (de certa forma, complementando os “400 Coups” de Truffaut, que caminhava em direcção ao momento do fim da inocência). Nunca será demais chamar a atenção para a aparição de Godard no filme, no papel do denunciante, que parece uma subtil afirmação dessa impossibilidade, uma impossibilidade de fingir, uma impossibilidade de continuar a ignorar a linha de fractura entre o cinema e a vida (tema a que Godard voltaria várias vezes, vide “Le Mépris”). Se Michel Poiccard, a personagem principal, se comporta como se tentasse viver dentro de um filme americano (por entre gangsters, carros americanos e uma fixação em Bogart), o seu fim é o mais lógico – com ele, morre o cinema, morre um cinema. O que nasce é qualquer coisa de muito menos transparente, um território sem certezas nem evidências. Como o rosto, no plano final, de Jean Seberg, que nos deixa a repetir, com ela, “qu’est-ce que c’est, dégueulasse?”.

Luís Miguel Oliveira

CINEMATECA PORTUGUESA-MUSEU DO CINEMA


Tabu de F. W. Murnau

Título em Portugal: Tabu Realizador: F. W. Murnau Ano: 1931 País: Estados Unidos Argumentista: F. W. Murnau e Robert J. Flaherty Fotografia...