Título em
Portugal: O Desprezo
Realizador: Jean-Luc Godard
Ano: 1963
País: França
Argumentista:
Jean-Luc Godard
baseado no romance “Il disprezzo” de
Alberto Moravia (a edição portuguesa mais recente, intitulada “O Desprezo”, e
foi editada pela Ulisseia, numa tradução de Maria Teresa de Barros Brito)
Fotografia:
Raoul Coutard e Alain Levent
Elenco
principal: Brigitte Bardot, Michel Piccoli, Jack Palance, Fritz Lang
Duração: 1
hora e 43 minutos
Por onde começar
com “Le mépris” (“O
Desprezo”, 1963)? Se calhar a pergunta correcta será: por onde começar com um
filme de Jean-Luc Godard? Como descodificar o caleidoscópio de metáforas,
citações, simbologias, referências, piadas, trocadilhos e mentiras que o
realizador põe em rotação em cada um dos seus filmes? A resposta é
inevitavelmente pouco satisfatória. Diante de “Le mépris” várias têm sido as leituras (mais ou menos
simplistas) desse novelo ardilosamente armadilhado.
Alguns encararam o filme como um reflexo das
complicações matrimoniais entre Godard e Anna Karina (estiveram casados entre
1961 e 1967), esta é a opção que toma Richard Brody, no livro “Everything Is Cinema: The Working Life Of
Jean-Luc Godard” (2008) – e que dá pano para mangas de alpaca.
Outra das leituras reflexivas procura, no filme dentro do filme, um comentário
sobre a rodagem do próprio projecto. Esta é uma leitura que se delicia a
descobrir paralelos entre o personagem de Jeremy Prokosch (interpretado pelo
norte-americano Jack Palance) e os produtores associados do filme, Carlo Ponti
e Joseph E. Levine. Esta leitura faz tanto mais sentido quando o filme que
Fritz Lang roda em “Le mépris” é
igualmente uma co-produção internacional milionária – Godard nunca tinha tido
um orçamento de um milhão de dólares – onde o produtor insiste que se
acrescente nudez e se vulgarize/telenovelize a “Odisseia” de Homero. O facto é que no caso de Godard
isso aconteceu mesmo, e vários dos momentos onde Brigitte Bardot surge despida
foram filmados a posteriori, por imposição dos produtores estrangeiros, em
especial o americano Levine.
Uma terceira leitura, proposta por Jonathan Rosenbaum
no ensaio «Critical Distance» (1997), vê no filme uma audaciosa (e
consequentemente falhada) construção de um arco entre a antiguidade e a
modernidade, em que o ponto de vista é o do primeiro e o alvo é o segundo –
como se ouve em Bande-annonce de “Le
mépris” (1963), “o novo filme tradicional de Jean-Luc Godard”. A
favor desta leitura estão os vários momentos em que a mitologia grega (filtrada
pelo cinema) e a mitologia do próprio cinema (filtrada pela “nouvelle vague”) se encontram e
contrastam. Por exemplo, quando Prokosch lança um lata de película como se
fosse um discóbolo da antiguidade, ou quando Michel Piccoli se passeia pelo
apartamento de chapéu de Dean Martin – piscando o olho a “Some Came Running” (“Deus
Sabe Quanto Amei”, 1958) de Vincente Minnelli – e toga grega feita de toalha de
banho. Já a leitura sobre a ontologia do próprio cinema – e do olhar tingido
pelas imagens dos filmes – é igualmente tentadora. O crítico João Lopes
escreveu, a propósito do filme, que “há no cinema uma espécie de simpatia,
propriamente erótica, com o acto de quem vê que é inegável, ou melhor, que é
aquilo a partir do qual o próprio [cinema] existe.” Daqui o filme transforma-se
no “meta-filme absoluto”, como lhe chama o programador da Cinemateca Antonio
Rodrigues. E tudo vira metáfora do ver, pelo (e através do) cinema.
Rodrigues encara também “Le mépris” como uma provocadora anedota que, ao
contrário do que é habitual, tem tanto mais graça quanto mais se explicar a
piada – partindo daí para um desembrulhar de todas as pequenas provocações que
Godard deixou pelo caminho, como as migalhas de pão de Gretel. O poemeto do
pobre B.B. (Bertol Brecht) que Lang declama à rica B.B. (Brigitte Bardot). O
personagem de Francesca Vanini que vem do filme de Rossellini [“Vanina Vanini” (1961)] e
que por sua vez é interpretado por Giorgia Moll que “retoma” o papel de “The Quiet American” (“Um
Americano Tranquilo”, 1958) de Joseph L. Mankiewicz – realizador sobre o qual
Godard publicou o seu primeiro artigo e filme que Godard adorava. A elevação da
“citação com referência bibliográfica” de Lang (que vai buscar Dante, Hölderlin
e Corneille, só lhe faltando referir a página) é posta em oposição ao livrinho
vermelho de Prokosch, onde nada do que se diz galantemente se sabe de onde vem,
ou por quem foi dito. E a partir daí – porque Godard nunca se leva tão a sério
como parece – temos a citação de abertura, atribuída a André Bazin, mas que não
se sabe se a ele pertenceu de facto (há a possibilidade de ser uma deturpação
de um texto de Michel Mourlet sobre os filmes indianos de Lang). Assim como é
igualmente apócrifa a frase de Louis Lumière sobre o cinema ser uma invenção
sem futuro. Ou ainda o jogo com a imagem pública de Bardot – que há época era a
mega estrela francesa, depois dos filmes com Roger Vadim – que além de mostrar
o rabinho (Brody interpreta o plano sequência sobre o traseiro da actriz, com
as três cores vermelho, branco e azul, como a literalização da opinião pública
de que aquelas duas nádegas eram o mais precioso tesouro francês), surge com
peruca negra, qual Anna Karina em “Vivre
sa vie: Film en douze tableaux” (“Viver a Sua Vida”, 1962), por
oposição à sua imagem de marca, a cabeleira-choucroute. E esta é apenas uma
súmula das pequenas graçolas do Sr. J.L.G.
A relação de Godard com o cinema clássico e com o
cinema do final dos anos 1950 e inícios de 1960 é outro filão possível – e
muito generoso para o garimpeiro cinéfilo. Numa das primeiras versões do
argumento do filme – Levine impôs que, pela primeira vez, Godard filmasse com
um guião (ainda que esse guião viesse a tomar formas improváveis) – o
personagem de Paul Javal é descrito como um personagem de “L’année dernière à Marienbad” (“O
Último Ano em Marienbad”, 1961) que deseja pertencer ao “Rio Bravo” (1959). O filme faz-se
nesse intervalo que tão bem souberam habitar os realizadores da “nouvelle vague”, entre o classicismo
americano e a modernidade do cinema do pós-guerra. De facto, há inúmeros
cartazes e referências que surgem nas paredes e nos diálogos (de Hitchcock a
Rossellini, de Hawks a Minnelli, passando por Ray e, claro, Fritz Lang). A
favor desse intervalo, que é também um intervalo comercial entre o cinema de
autor e o trabalho alimentício, Paul aparentemente terá escrito tanto um filme
chamado “Toto vs. Hercules” que
é, certamente, uma farpa lançada a Monicelli e ao seu “Totò e i re di Roma” (1951), mas
também terá ajudado (ele que é um “script
doctor”) em “Bigger Than
Life” (“Atrás do Espelho”, 1956) de Nicholas Ray – sendo por isso
inspirado, talvez, na dupla Cyril Hume e Richard Maibaum que, como Paul, vinham
do teatro e acabaram a escrever vários filmes da série do Tarzan e do 007.
E como sub-produto desta autópsia cinéflia, ainda se
pode ver em “Le mépris” as
ressonâncias (vindas de trás e caminhando para diante) dentro da própria obra
de Jean-Luc Godard. A cena da discussão caseira que parece ser a “sequela” –
como o diz Rosenbaum – de uma cena semelhante em !À bout de souffle” (“O Acossado”, 1960) e que não está assim
tão distante da famosa cena do morto em “Pierrot le fou” (“Pedro, o Louco”, 1965), nem mesmo das cenas
de casa de banho em “Adieu au
langage” (“Adeus à Linguagem”, 2014), onde a profundidade de campo
e a distorção do scope já anunciavam as estrábicas três
dimensões desta última incursão. E o número de personagens principais chamados
Paul nos seus filmes? E o numero de vezes em que Godard surge como discreto
secundário (aqui como assistente de Lang)? Ou as outras vezes em que Godard
citou a falsa epígrafe de Bazin, em “Histoire(s) du cinema” (“História(s) do Cinema”, 1989-1999)
e “For Ever Mozart” (“Para
Sempre Mozart”, 1996). Ou citou o próprio “Le mépris”, nas “Histoire(s)”,
claro, e também em “JLG/JLG –
autoportrait de décembre” (“J.L.G. por J.L.G.”, 1994), onde refere
que uma das suas falhas como “movie maker/goer” foi não ter feito o filme com
Frank Sinatra e Kim Novak, como era o seu desejo original (em vez de Loren e
Mastroianni, que era o desejo de Ponti, ou Bardot e Piccoli que foi o meio
termo possível).
Enfim, “Le
mépris” tem essa qualidade rara no cinema, mas muito comum no
cinema de Jean-Luc Godard, de permitir uma quase infinidade de leituras. Como
se cada plano, cada frase escrita ou dita, cada presença, cada gesto, fossem já
a ponta de um pensamento (profundo, ou nem tanto assim…), do qual, puxando,
tudo vem por arrasto. Um tudo que é sinóptico do cinema, na sua falsa
equivalência com a vida. E é no fundo o argumento que procuro defender: “Le mépris” é filme
diamantino, no sentido em que tem múltiplas faces e todas elas reflectem em
diferentes sentidos. É um desses filmes cheios, pejados de universos, onde o ar
se encontra rarefeito – sempre na vertigem do mofo da citação, mas ainda assim
fresco na articulação improvável entre esses mesmos universos. É um objecto
fílmico sobre o qual cada um parece conseguir encontrar sinais do que procura
e, ao contrário de outros filmes, não são os espectadores que moldam o filme, é
o filme que nos conduz o olhar ao longo das suas arestas.
Mas se isto é evidente em “Le mépris”, é apenas corolário da obra
do realizador franco-suíço. Nesse sentido, a obra de Godard será teorema da própria
experiência cinéfila. É aqui que se encontra o cerne deste filme: vê-lo é
encontrar reflectida a imagem do espelho que é o cinema. Um “mise en abyme” de
reflexões que, qual prisma, refracta o real, decompondo-o em imagens – não é
por acaso que na primeira cena entre Piccoli e Bardot este a observa através de
um espelho. Para Godard, que é o mesmo que dizer, para o cinéfilo – vítima
dessa “doença que eclode na puberdade mas pode ser ultrapassada com algum
acréscimo de convívio”, como o define o Miguel Gomes –, o cinema é filtro (e
escudo) da vida. Vive-se para e através do cinema e “Le mépris” é o enxugamento
desse embate (combate?) que se dá entre a vida e o cinema.
Luís Miguel Oliveira conclui o seu ensaio «Um lugar na
terra como no céu» (1999) com contornos semelhantes ao meus: “Godard acreditou
que o cinema podia ser ‘tudo’ , porventura como nunca ninguém acreditou. (…)
Por que é que ela [a sua história] nos toca tanto? Talvez porque ela ecoe a
nossa história, a história de todos os cinéfilos ou de todos aqueles que um dia
acreditaram que a cinefilia abria um mundo ‘de acordo com os nossos
desejos’.” “Le mépris” é
um filme que ainda acredita – já não de forma pia – nos poderes do cinema
enquanto ferramenta do próprio viver. E digo que não é pia a crença porque já
tudo está em ruínas: as esculturas gregas estão amputadas, os estúdios da
Cinecittà estão decrépitos (e foram vendidos para uma “five and ten cent store”), os
realizadores clássicos de Hollywood já só conseguem filmar na Europa (e mal) e
como se ouve logo no terceiro plano do filme, “c’est la mort du cinéma” –
traduzindo “It’s my last kingdom”. A este propósito, o conto que ouvimos da
boca de Paul sobre Ramakrishna e o seu discípulo é sintomático da relação do
cinéfilo com o cinema e a vida. O discípulo, parecendo-lhe que o seu
desenvolvimento espiritual não era rápido o suficiente, abandonou o mestre e
resolveu estudar sozinho. Passados vários anos regressa e, diante de
Ramakrishna, caminha sobre as águas do rio sem se molhar. O sábio observa e
comenta: “há dez anos já fiz exactamente isso com uma moeda e uma gôndola”. O
discípulo é como o cinéfilo: acreditou de mais no cinema, ao ponto de o achar
mais real que o real. Moldou o mundo à imagem do cinema, perdendo o contacto
com a matéria das coisas e das pessoas.
Godard opera esta enganosa metáfora na articulação
entre o primeiro e o último plano de “Le mépris”. No primeiro, a câmara através da qual vemos
encontra-se com a que nos é mostrada, os olhares das duas cruzam-se, olhando-se
de frente – o cinema que se olha nos olhos. No segundo, a câmara de Fritz Lang
filma Ulisses que olha pela primeira vez a sua pátria, Ítaca, depois de vários
anos de viagem. A câmara de Godard filma esse momento da rodagem e, num “travelling” seguido de uma
panorâmica para a esquerda, subjectiva-se, coincidindo com o olhar do próprio
Ulisses. Isto é, o cinema moderno toma o olhar do protagonista da “Odisseia” através do cinema
clássico americano – os olhos que se olham no cinema. E através desse olhar… o
horizonte poisado num mar azul.
Ricardo Vieira Lisboa
Blog À Pala de Walsh
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