Título em
português: Uma História Simples
Realizador: David Lynch
Ano: 1999
País:
Estados Unidos
Argumento:
John E. Roach e Mary Sweeney
Fotografia:
Freddie Francis
Elenco
principal: Richard Farnsworth, Sissy Spacek, Harry Dean Staton
Duração: 1
hora e 52 minutos
“The Straight Story” é um
caso único na filmografia de David Lynch. Com roteiro de Mary Sweeney e John
Roach, é o único d[as] s[uas] longas-metragens que, para além de reproduzir uma
história real, se atém estritamente a uma premissa realista, levando-a ao cabo
da sentimentalidade implicada na trajetória de sua personagem principal.
(…)
O que o filme narra é a viagem de [Straight] Alvin, que, após
receber a notícia do infarto de seu irmão, deve atravessar o estado do Iowa e
chegar até a casa deste no Mississipi, para reencontrá-lo após dez anos de
inimizade. A narrativa desta travessia, por si mesma, é acrescida de certa
caráter épico de tons absurdos conforme a cegueira de Alvin não o permite
dirigir um carro comum, implicando por sua própria decisão em percorrer todo o
caminho a bordo de um cortador de grama dirigível. Sua viagem levará semanas,
oportunidade para que Alvin, aos 73 anos e em fraca saúde, repasse os eventos
mais significativos de sua vida e tenha, possivelmente, a sua última grande
aventura.
(…)
O trajeto de Alvin é frequentemente
representado da mesma forma, com o seu pequeno veículo percorrendo o
acostamento, enquanto atravessa paisagens rurais e é ultrapassado por
automóveis em alta velocidade. Sempre a mesma cena e sempre o mesmo distúrbio
que marca a lentidão de Alvin e a velocidade de todos os outros passageiros, em
uma série de pequenas vinhetas, esquetes cômicas que pontuam pouco a pouco a
sua viagem. Primeiro, é um caminhão que levanta um vento forte que leva embora
o seu chapéu; depois, é um carro que passa buzinando; mais tarde, uma mulher
que atropela um veado logo a sua frente; ainda, ao final, a surpresa e o
maravilhamento de Alvin frente a uma quantidade enorme de ciclistas que passam
por ele, sem que possa acompanhar cada um com os olhos.
Nos encontros que tem ao longo dessa
trajetória e nos diálogos que estabelece com as poucas pessoas com quem se
comunica é que se nota o caráter mais propriamente folclórico dessa narrativa.
Pois Alvin, sempre contido, se mostra um sujeito de sabedoria frente a quem
quer que fale, uma sabedoria popular, de experiência, ao que se soma a
camaradagem sua e daqueles que encontra pelo caminho. Nestes momentos, não é
raro pensar em certo lirismo, associado a noções presentes em Robert Frost e na
poesia americana de tradição mais popular, que trata do respeito entre os
homens e a consideração da vida na natureza (…).
Em grande medida, “The Straight Story”
possui um caráter “contemplativo”, explorado sistematicamente por momentos que
descrevem a lentidão de sua travessia, que fazem passar o tempo através de
imagens aéreas das paisagens que percorre, do nascer e do pôr do sol, do
trabalho no campo e outras visões pitorescas. Em outros filmes, este sentimento
“poético” associado à natureza poderia se apresentar como um dado decorativo,
em uma associação banal entre a natureza e um caráter transcendente. Mas Lynch
não filma estes planos estaticamente, não faz com que o filme simplesmente se
detenha a exibir a “beleza” de qualquer paisagem particular. Ao contrário, dota
sempre estas imagens de um movimento e de um caráter reiterativo, explicitado
pela música-tema que as acompanha repetidamente, como um refrão ao longo do
filme.
Não há um sentido de transcendência na natureza
apresentada; há uma contemplação, pode-se dizer, mas que está associada ao
trabalho e a paisagem onde estas figuras habitam, nunca como um refúgio ou
qualquer ideal idílico. É sua realidade mais imediata que se aponta e, neste
sentido, Alvin não está a caminho de descobrir a si mesmo, de encontrar fatos
novos, mas de acertar as contas com o seu passado, seja com os fatos vividos ao
longo da Segunda Guerra, seja mais imediatamente com o irmão querido de quem se
afastou. Mesmo que sua viagem tenha um objetivo bem definido, rumo ao destino
apontado a princípio, ela é constantemente acompanhada da incerteza deste
encontro, bem como das reflexões que o levaram até ali, em um momento tardio da
vida.
Neste sentido, este é um filme que trata
de maneira singela os fatos prosaicos, dotando os elementos mais realistas de
uma significação poética discreta e sutil, mas profunda. Pois, justamente,
Alvin Straight é uma personagem sólida, que possui uma dureza intrínseca (…).
O título original “The Straight Story”
(traduzido em português como “Uma história [simples]”) é adequado para tanto:
não se refere simplesmente à “história de Alvin Straight”, mas à “história
direta”, à narrativa sem os desvios e distorções característicos de David
Lynch. (…) Atuando como um eficiente realizador, Lynch se entrega de maneira
mais comprometida ao realismo do que em qualquer caso de sua filmografia,
narrando uma história no qual os seus traços de autoria se imprimem somente de
modo secundário – autoria que aqui deveria ser atribuída a Mary Sweeney, por
quem o filme fora concebido, roteirizado, produzido e editado.
(…)
[Quando, por fim,
encontra o irmão], ambos se sentam na varanda e o irmão, observando o moedor de
grama em seu jardim, pergunta a Alvin: “Você veio até aqui com isso?”, ao que o
outro confirma. A seguir, é apenas o olhar e a sua consideração a propósito
desta travessia o que mais profundamente comunica o sentimento deste
reencontro. Ambos permanecem sentados lado a lado, enquanto a câmera se perde
por entre os dois e tudo acaba. Depois das outras conversas, nenhuma outra
palavra poderia comportar a importância deste momento; nenhuma informação a
mais é dada a propósito desse irmão ou da relação entre os dois, assim como
nada mais é dito. É tão significativa a sua trajetória que este encontro final
se torna, por sua vez, “pequeno” frente ao que lhe precedeu: é um clímax
dramático, é claro, e é o clímax desejável, pois ele também mostra a
grandiosidade do caminho para chegar até ali. Este silêncio faz ver, de maneira
mais profunda, qual é também o feito alcançado por este filme, pois a falta de
necessidade de palavras mostra o quanto a construção que levou ao encontro
destas duas personagens é ainda mais importante do que este encontro em si,
sendo este apenas o desfecho de algo muito maior, transposto com uma humildade
desconcertante, fato que talvez mais surpreenda em todo este filme.
(…)
Matheus Zenom
Limite
Revista de ensaios e crítica de arte