Título em
Portugal: Longe do Paraíso
Realizador: Todd Haynes
Ano: 2002
País:
Estados Unidos
Argumentista:
Todd Haynes
Fotografia:
Edward Lachman
Elenco
principal: Julianne Moore, Dennis Quaid, Dennis Haysbert, Patricia Clarkson
Duração: 1
hora e 47 minutos
Cathy Whitaker vive com seu marido Frank o casamento perfeito. A
cena de apresentação de “Longe do
Paraíso” não poderia ser mais declaradamente reveladora: uma cidade
perfeita, um carro perfeito, um jardim perfeito, dois filhos lindos, as
múltiplas tarefas de uma dedicada mãe de família no final dos anos 50. Tamanha
dedicação não poderia passar despercebida pela publicidade nem pela crónica
local: Cathy é a sra. Magnatech, ícone publicitário da empresa para a qual seu marido
trabalha. Um ícone publicitário é um exemplo, é um objecto de desejo: ser a
sra. Magnatech é alcançar o posto mais almejado de uma sociedade, o triunfo
final que comprova a felicidade do lar e o sucesso na construção de um
casamento perfeito. Mas ser ícone publicitário diz também – e talvez acima de
tudo – respeito à imagem: não basta simplesmente ser um exemplo, é preciso
acima de tudo parecê-lo. Nisso, Cathy parece ser mais bem-sucedida ainda: sabe
a resposta precisa para cada comentário possivelmente constrangedor, conduz com
habilidade toda situação delicada em que ela (ou o marido) se encontra. Ao espectáculo
que todas as pessoas da sociedade esperam e exigem dela, Cathy responde com um
filme perfeito, uma performance magistral ornamentada de flores e sentimentos
correctos.
E “Longe do Paraíso” é menos
um filme sobre Cathy do que um filme de Cathy: da direcção de
arte construída a partir das flores como “leitmotiv” à fotografia apoiada nas cores
quentes e numa paleta “fifties” (fabuloso trabalho de Ed Lachman), a “mise-en-scène” do filme
constrói-se em paralelo de sentimentos com a personalidade e com o papel social
de sua heroína. Paralelos, mas que não se confundem. “Longe do Paraíso” faz questão de
trabalhar sempre um tom acima, seja na interpretação dos atores – declamada e
posada demais para os códigos do cinema feito hoje –, seja na cenografia
milimetricamente exagerada e conotativa. Mas também, e talvez principalmente,
pelos efeitos de dissonância criados entre a imagem (tanto a do filme,
deslumbrante, quanto a imagem pública – roupas, maquiagem, cabelo, reputação –
da personagem de Cathy) e a situação sentimental das pessoas que vemos na tela,
de uma miséria existencial incapaz de ser purgada por nós, espectadoresa. Naturalmente,
cria-se um curioso efeito de distanciamento, não muito distante do brechtiano –
de fato, os dois Dennis, Quaid e Haysberg, jamais utilizam tácticas de
interiorização, preferindo portar-se mais como “casos” do que como personagens –, mas que é incorporado por
todos os elementos expressivos do filme, e não só pela actuação: da utilização
da música de Elmer Bernstein à tentativa de “remake” de um melodrama “sirkiano”,
tudo parece em momentos diversos nos jogar fora e dentro da trama, nos
emocionar e depois (ou antes) perspectivar aquilo que estamos vendo.
Naturalmente, estamos
diante de um filme-conceito. A tentativa de Todd Haynes com “Longe do Paraíso” não é a de uma
estratégia reaccionária de trazer novamente para as telas o valor estético de um
cinema como se fazia antigamente. A
táctica aqui é a do dispositivo: apropriar-se de um repertório temático e
estilístico hoje considerado ultrapassado ou “démodé” – os melodramas de Douglas Sirk,
especialmente “O Que O Céu Permite” e “Espelho da Vida” –
para trazer questionamentos sobre a sociedade americana de hoje (o racismo, o
homossexualismo, o amor interracial) e sobre qualquer outro agrupamento (as
pressões de grupo, a impossibilidade de um lugar – mais existencial do que
geográfico – para dar vazão aos sentimentos mais verdadeiros). Pois Todd Haynes
(…) é menos um esteta do que um provocador, e o seu interesse é menos restituir
uma certa experiência de cinema do que problematizar um determinado estado de
coisas social que envolve questões políticas (o papel da mulher, do negro, do
homossexual na sociedade), mas também – e, talvez, principalmente – questões
éticas: retomar a linguagem do melodrama é repensar a imagem que a América fez
de si mesma durante o “boom” da sociedade de consumo e da cultura dos “gadgets”,
e como vendeu essa imagem para o resto do globo. Afirmar que esse mundo vendido
há 50 anos é um mundo "longe do paraíso" – por reprimir os únicos
sentimentos que são significativos, por vender uma imagem falsa de perfeição,
por fazer um povo inteiro interiorizar imperativos morais fortes demais para
serem sustentados – parece ser a verdadeira preocupação do filme de Todd
Haynes.
(…)
Em “Longe do Paraíso”
há também algum sentimento lacunar em relação ao melodrama dos anos 50. Mas,
desta vez, esse sentimento não decorre de nenhum cinismo em relação ao conjunto
de filmes emulados, e sim de diferença na proposta e no tempo: enquanto os
melodramas exigiam a imersão total do espectador na tela para que funcionasse o
efeito estético, Todd Haynes precisa fazer com que esse elo seja rompido nos
momentos certos – a cena em que as colegas da filha de Cathy se afastam dela,
com uma encenação e disposição de lugares inteiramente conotativa, jamais
poderia estar num filme de Sirk. Na superfície, pode acreditar-se que Haynes
seja simplesmente um contador de histórias, mas hoje ele muito mais "o cineasta mais militante da
América".
“Longe do Paraíso” é tudo isso, mas
é também uma surpreendente história de amor, em que dois sentimentos têm actuações
tão decisivas quanto Julianne Moore e Dennis Haysberg: a fúria dos desejos e a
decorrente tentativa de contenção. Da primeira vez, quando Cathy se encontra
com Raymond, é um mal-entendido (ela vê um estranho, negro, no seu jardim; vai
lá e descobre que é apenas o novo jardineiro). Da segunda vez, é resultante de
uma coincidência: o seu lenço voa e cai nos traseiras da casa. Raymond,
solícito, carinhoso e solitário (sua esposa falecera anos atrás), dá a Cathy
toda a atenção que ela necessita naquele momento. Vivenciando um momento em que
a ficção da mulher-exemplo acaba de ser rompida (ela presencia um marido nos
braços de outro homem, no seu escritório), ela precisa aprender com Raymond o
que é ser outro num mundo que só parece suportar uma determinada forma de vida (branca,
heterossexual, feliz e em consumo). Surge então um amor que não pode ser dito,
expresso e muito menos consumado: eles não podem ser vistos juntos num bar para
brancos ou num restaurante para negros, na frente da casa de Raymond ou na rua,
diante de pessoas dispostas a proteger a dama desde que ele a toque no braço.
Cathy é a "nice
to negroes", diz o texto da jornalista gorda e bonacheirona que vai
entrevistá-la para o jornal local. No início do filme, isso é considerado digno
de louvor. E desde que os negros mantenham o seu lugar – ou seja, que não
almejem estar em igualdade com os brancos –, tudo parece óptimo. Não há ameaça
racial na cidade porque, como diz um dos personagens do filme, "nem temos
negros aqui" (a frase é dita diante de um criado negro). Mas basta um
rumor para que o "nice to negroes" lhe seja lançado à cara por um
marido furioso. Cathy, no entanto, passará de benfeitora (no que tudo isso tem
de paternalista) de negros a admiradora, e por fim vai ultrapassar a barreira
que a sociedade lhe impõe, e apaixonar-se-á por Raymond. No dia em que seu novo
amado vai partir da cidade definitivamente – porque os brancos não fazem mais
negócios com ele e os negros apedrejam-lhe as janelas –, é o lenço lilás que a
faz lembrar que ele irá partir. O instante do adeus é breve, as palavras de
esperança são logo conjuradas pela impossibilidade da união, o final é triste,
mas ao menos, por um instante na vida, Cathy Whitaker conseguiu voar em
liberdade, como o seu lenço, directo para os braços do homem que ama. Nesse
instante, ao menos, Cathy conseguiu enxergar aquilo que ela só tinha
vislumbrado – as únicas palavras de amor que ela tinha proferido foram
"Você é tão bonito", depois de tê-lo demitido –: a beleza não está
numa tábua de adequações e no jogo de quem-é-quem social, mas nas intensidades
das relações que se criam. Tanto a dor pessoal da protagonista quanto a miséria
existencial da sociedade que a rodeia terminam emolduradas por belas flores
brancas.
Texto (adaptado) de Ruy Gardnier
Blog Contracampo
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