sábado, 9 de março de 2024

Far from Heaven de Todd Haynes


 

Título em Portugal: Longe do Paraíso

Realizador: Todd Haynes

Ano: 2002

País: Estados Unidos

Argumentista: Todd Haynes

Fotografia: Edward Lachman

Elenco principal: Julianne Moore, Dennis Quaid, Dennis Haysbert, Patricia Clarkson

Duração: 1 hora e 47 minutos

 

Cathy Whitaker vive com seu marido Frank o casamento perfeito. A cena de apresentação de “Longe do Paraíso” não poderia ser mais declaradamente reveladora: uma cidade perfeita, um carro perfeito, um jardim perfeito, dois filhos lindos, as múltiplas tarefas de uma dedicada mãe de família no final dos anos 50. Tamanha dedicação não poderia passar despercebida pela publicidade nem pela crónica local: Cathy é a sra. Magnatech, ícone publicitário da empresa para a qual seu marido trabalha. Um ícone publicitário é um exemplo, é um objecto de desejo: ser a sra. Magnatech é alcançar o posto mais almejado de uma sociedade, o triunfo final que comprova a felicidade do lar e o sucesso na construção de um casamento perfeito. Mas ser ícone publicitário diz também – e talvez acima de tudo – respeito à imagem: não basta simplesmente ser um exemplo, é preciso acima de tudo parecê-lo. Nisso, Cathy parece ser mais bem-sucedida ainda: sabe a resposta precisa para cada comentário possivelmente constrangedor, conduz com habilidade toda situação delicada em que ela (ou o marido) se encontra. Ao espectáculo que todas as pessoas da sociedade esperam e exigem dela, Cathy responde com um filme perfeito, uma performance magistral ornamentada de flores e sentimentos correctos.

E “Longe do Paraíso” é menos um filme sobre Cathy do que um filme de Cathy: da direcção de arte construída a partir das flores como “leitmotiv” à fotografia apoiada nas cores quentes e numa paleta “fifties” (fabuloso trabalho de Ed Lachman), a “mise-en-scène” do filme constrói-se em paralelo de sentimentos com a personalidade e com o papel social de sua heroína. Paralelos, mas que não se confundem. “Longe do Paraíso” faz questão de trabalhar sempre um tom acima, seja na interpretação dos atores – declamada e posada demais para os códigos do cinema feito hoje –, seja na cenografia milimetricamente exagerada e conotativa. Mas também, e talvez principalmente, pelos efeitos de dissonância criados entre a imagem (tanto a do filme, deslumbrante, quanto a imagem pública – roupas, maquiagem, cabelo, reputação – da personagem de Cathy) e a situação sentimental das pessoas que vemos na tela, de uma miséria existencial incapaz de ser purgada por nós, espectadoresa. Naturalmente, cria-se um curioso efeito de distanciamento, não muito distante do brechtiano – de fato, os dois Dennis, Quaid e Haysberg, jamais utilizam tácticas de interiorização, preferindo portar-se mais como “casos” do que como personagens –, mas que é incorporado por todos os elementos expressivos do filme, e não só pela actuação: da utilização da música de Elmer Bernstein à tentativa de “remake” de um melodrama “sirkiano”, tudo parece em momentos diversos nos jogar fora e dentro da trama, nos emocionar e depois (ou antes) perspectivar aquilo que estamos vendo.

 

Naturalmente, estamos diante de um filme-conceito. A tentativa de Todd Haynes com “Longe do Paraíso” não é a de uma estratégia reaccionária de trazer novamente para as telas o valor estético de um cinema como se fazia antigamente. A táctica aqui é a do dispositivo: apropriar-se de um repertório temático e estilístico hoje considerado ultrapassado ou “démodé” – os melodramas de Douglas Sirk, especialmente “O Que O Céu Permite” e “Espelho da Vida” – para trazer questionamentos sobre a sociedade americana de hoje (o racismo, o homossexualismo, o amor interracial) e sobre qualquer outro agrupamento (as pressões de grupo, a impossibilidade de um lugar – mais existencial do que geográfico – para dar vazão aos sentimentos mais verdadeiros). Pois Todd Haynes (…) é menos um esteta do que um provocador, e o seu interesse é menos restituir uma certa experiência de cinema do que problematizar um determinado estado de coisas social que envolve questões políticas (o papel da mulher, do negro, do homossexual na sociedade), mas também – e, talvez, principalmente – questões éticas: retomar a linguagem do melodrama é repensar a imagem que a América fez de si mesma durante o “boom” da sociedade de consumo e da cultura dos “gadgets”, e como vendeu essa imagem para o resto do globo. Afirmar que esse mundo vendido há 50 anos é um mundo "longe do paraíso" – por reprimir os únicos sentimentos que são significativos, por vender uma imagem falsa de perfeição, por fazer um povo inteiro interiorizar imperativos morais fortes demais para serem sustentados – parece ser a verdadeira preocupação do filme de Todd Haynes.

(…)

Em “Longe do Paraíso” há também algum sentimento lacunar em relação ao melodrama dos anos 50. Mas, desta vez, esse sentimento não decorre de nenhum cinismo em relação ao conjunto de filmes emulados, e sim de diferença na proposta e no tempo: enquanto os melodramas exigiam a imersão total do espectador na tela para que funcionasse o efeito estético, Todd Haynes precisa fazer com que esse elo seja rompido nos momentos certos – a cena em que as colegas da filha de Cathy se afastam dela, com uma encenação e disposição de lugares inteiramente conotativa, jamais poderia estar num filme de Sirk. Na superfície, pode acreditar-se que Haynes seja simplesmente um contador de histórias, mas hoje ele muito mais  "o cineasta mais militante da América".

“Longe do Paraíso” é tudo isso, mas é também uma surpreendente história de amor, em que dois sentimentos têm actuações tão decisivas quanto Julianne Moore e Dennis Haysberg: a fúria dos desejos e a decorrente tentativa de contenção. Da primeira vez, quando Cathy se encontra com Raymond, é um mal-entendido (ela vê um estranho, negro, no seu jardim; vai lá e descobre que é apenas o novo jardineiro). Da segunda vez, é resultante de uma coincidência: o seu lenço voa e cai nos traseiras da casa. Raymond, solícito, carinhoso e solitário (sua esposa falecera anos atrás), dá a Cathy toda a atenção que ela necessita naquele momento. Vivenciando um momento em que a ficção da mulher-exemplo acaba de ser rompida (ela presencia um marido nos braços de outro homem, no seu escritório), ela precisa aprender com Raymond o que é ser outro num mundo que só parece suportar uma determinada forma de vida (branca, heterossexual, feliz e em consumo). Surge então um amor que não pode ser dito, expresso e muito menos consumado: eles não podem ser vistos juntos num bar para brancos ou num restaurante para negros, na frente da casa de Raymond ou na rua, diante de pessoas dispostas a proteger a dama desde que ele a toque no braço.

Cathy é a "nice to negroes", diz o texto da jornalista gorda e bonacheirona que vai entrevistá-la para o jornal local. No início do filme, isso é considerado digno de louvor. E desde que os negros mantenham o seu lugar – ou seja, que não almejem estar em igualdade com os brancos –, tudo parece óptimo. Não há ameaça racial na cidade porque, como diz um dos personagens do filme, "nem temos negros aqui" (a frase é dita diante de um criado negro). Mas basta um rumor para que o "nice to negroes" lhe seja lançado à cara por um marido furioso. Cathy, no entanto, passará de benfeitora (no que tudo isso tem de paternalista) de negros a admiradora, e por fim vai ultrapassar a barreira que a sociedade lhe impõe, e apaixonar-se-á por Raymond. No dia em que seu novo amado vai partir da cidade definitivamente – porque os brancos não fazem mais negócios com ele e os negros apedrejam-lhe as janelas –, é o lenço lilás que a faz lembrar que ele irá partir. O instante do adeus é breve, as palavras de esperança são logo conjuradas pela impossibilidade da união, o final é triste, mas ao menos, por um instante na vida, Cathy Whitaker conseguiu voar em liberdade, como o seu lenço, directo para os braços do homem que ama. Nesse instante, ao menos, Cathy conseguiu enxergar aquilo que ela só tinha vislumbrado – as únicas palavras de amor que ela tinha proferido foram "Você é tão bonito", depois de tê-lo demitido –: a beleza não está numa tábua de adequações e no jogo de quem-é-quem social, mas nas intensidades das relações que se criam. Tanto a dor pessoal da protagonista quanto a miséria existencial da sociedade que a rodeia terminam emolduradas por belas flores brancas.

Texto (adaptado) de Ruy Gardnier

Blog Contracampo

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