Título em
Portugal: A Vida do Coronel Blimp
Realizador: Michael Powell e Emeric Pressburger
Ano: 1943
País: Reino
Unido
Argumentista:
Michael Powell e Emeric Pressburger
Fotografia:
Georges Périnal
Elenco
principal: Roger Livesey, Deborah Kerr, Anton Walbrook
Duração: 2
horas e 43 minutos
Quem é este
Blimp que, com esse nome, nunca encontramos neste filme? Antes de mais o
coronel Blimp foi uma criação do desenhador David Low, caricatura das fraquezas
e da impossibilidade da adaptação às coisas novas que se revelavam em certos
meios militares (parece familiar?), que "nasceu" nas páginas do
Evening Standard a 20 de Abril de 1934, tendo "desaparecido" temporariamente
entre 1942 e 1943, por razões que mais adiante se abordarão. Quem vem a ser
então a "Blimpery" (o "Blimpismo")? Qual a sua essência? A
melhor definição parece ter sido feita por um deputado trabalhista na Câmara
dos Comuns: «It has, no doubt, two main characteristics. In the first place,
there is the refusal to entertain new ideas, and in the second place, the
determination to keep the bottom dog permanently in his place». Recusa portanto
da inovação, refúgio na burocracia e rotina. Na altura em que Powell e Pressburger
projectaram o seu filme a questão estava no auge e se o espírito de Blimp
estava a ser expurgado do exército (e tinha de o ser para vencer a guerra)
subsistia ainda o suficiente para olhar com incompreensão para o argumento.
Desde logo, a reacção oficial ao filme foi de que se tratava de
"propaganda negativa". E, no entanto, a crítica justificava-se, dados
os sucessivos desaires das forças armadas inglesas no ano de 1942, tendo o
Ministério da Informação declarado a semana de 16 a 23 de Fevereiro a mais
negra desde Dunquerque (entre os desaires teve lugar, a 15, a rendição do
general Perceval e 60.000 homens em Singapura). Powell e Pressburger tiveram o
cuidado, porém, de deixar bem claro na introdução ao argumento, que o filme era
dedicado ao Novo Exército Britânico aquele que, isento do espírito Blimp, se
preparava para ripostar, «the men and the women who know what they are fighting
for and are fighting this war to win it». De facto isso é evidente mesmo a um
olhar superficial sobre “The Life and Death of Colonel Blimp”, cujo título
original é, desde logo significativo, com a ênfase na morte (que o título
português omite o que não deixará de ter sido curioso). Powell e Pressburger
iniciam o seu filme com uma revolta aberta contra o velho espírito. Aquilo era
uma guerra total onde o cavalheirismo não tinha lugar, daí que ao «The war
starts at midnight» que enfaticamente repete o general Candy (o nome ideal para
o nosso Blimp), Spud, o representante do novo exército responde que o inimigo
não fica à espera. Se ele antecipou o ataque em relação à hora marcada para o
início dos exercícios fê-lo como os japoneses fizeram em Pearl Harbor. Aliás o
confronto entre Spud e Candy nos banhos turcos é extremamente significativo das
diferentes concepções que tinham da guerra e da forma de a levar a cabo. De
qualquer modo, Powell e Pressburger tiveram o cuidado em não fazer o que se
poderiam considerar referências ao estado do exército então, fazendo de Candy
um general aposentado em 1935 chamado ao serviço no início da guerra. Isso não
impediu, porém, os problemas que enfrentou logo a partir da fase de rodagem. O
Secretário de Estado para a Guerra, James Grigg escrevia numa nota a Churchill
que o filme devia ser interrompido porque «it focuses attention on an imaginary
type of Army officer who has become an object of ridicule to the general
public». Ainda antes de estar pronto e de ser visto, Churchill acusou-o de ser
«propaganda detrimental to the morale of the Army».O filme já tivera alguns
problemas na fase de pré-produção tendo-lhe sido recusado o apoio logístico
militar, o que é visível nas sequências da grande guerra que Powell e
Pressburger elidem magistralmente com alguns planos de trincheira, cenários
pintados e uma magistral contra-luz no último plano que marca o fim da guerra.
Apesar de ter sido autorizado e ter usufruído de uma publicidade involuntária
que lhe foi favorável com os problemas que teve, “The Life and Death of Colonel
Blimp” não foi o êxito esperado e a sua apresentação nos Estados Unidos
far-se-ia numa cópia muito amputada. Que nos reserva hoje, “The Life and Death
of Colonel Blimp”, que era, de toda a sua carreira, o filme favorito de Emeric
Pressburger? Pois, um nunca acabar de surpresas que o transformam numa das
obras mais admiráveis do cinema britânico, e não me refiro exclusivamente à
década de quarenta. Do genérico que reproduz a criação de David Low, ao plano
final em que o velho Candy ao fazer continência ao exército novo que desfila é
o eco simpático e terno de quem já não tem nada a ver com aquele mundo e assume
a sua posição com dignidade. Àquele genérico vem de imediato contrapor-se o
movimento irresistível que nos leva por um alucinante travelling ao longo das
estradas acompanhando os motociclistas, grupo que se vai cindindo em cada
encruzilhada provocando uma vertigem idêntica à de uma montanha russa. Os
opostos estão apresentados: a placidez e a rotina contra a velocidade e o
improviso que os novos vão revelar para alcançarem a vitória nas manobras. A
partir de então os autores do filme podem apresentar as origens de Blimp: o
flash-back faz-se num dos mais belos raccords que alguma vez se viu no cinema,
dentro do mesmo e único plano: Candy e Stub em luta na piscina, o som que a
pouco e pouco diminui enquanto a câmara avança solenemente pelo espaço
rectangular da piscina e das águas agora pacíficas de onde emerge uma cabeça
coberta de cabelo negro: Candy em jovem. Suspendam o fôlego, saboreiem
religiosamente este momento admirável onde a água é azul, como só Spielberg nos
voltará a dar quase quarenta anos depois, apenas um dos momentos prodigiosos da
paleta cromática de George Perinal, aqui coadjuvado por Jack Cardiff. Ele é
apenas um entre muitos outros, cada qual de cortar a respiração: toda a
representação do duelo, por exemplo, apresentado com todos os rituais que o
regulamento impõe (o delicioso encontro das testemunhas destinado a organizar
os preparativos), e em que Candy vai encontrar Theo, oficial prussiano que dá a
Anton Wallbrook uma das mais prodigiosas criações. Como nas outras sequências
de acção, a Powell só interessa praticamente o que antecede o seu eclodir: um
belíssimo movimento de grua deixa os adversários no começo da troca de golpes,
para se encadear com outro que vai ao telhado do edifício em maqueta a um plano
de conjunto. O movimento e o próprio enquadramento não deixa de evocar outro
momento célebre na história do cinema: o que abandona a segunda mulher de Kane
após as entrevistas com o jornalista no primeiro filme de Welles. Se Powell não
recusa a sua simpatia a um representante de um romantismo aventureiro (o gesto
impulsivo de ir a Berlim; a fabulosa conversa sobre Sherlock Holmes e o
"Cão dos Baskervilles"; a genial sequência da cervejaria alemã com a
música duma opereta em voga para provocar o adversário), a crítica que faz ao
seu comportamento é lúcida e marcada pela ironia. Os raccords temporais com que
se ilustra em breves planos muitos anos da vida de Candy são, neste último
caso, dos mais belos que se viram: as imagens com os troféus que se vão
acumulando acompanhadas por uma música tonitruante que culmina num momento
decisivo: o capacete do huno no final da Grande Guerra; ou aquele que ilustra a
sua vida de casado através das fotos de viagem terminando com uma página do
álbum. Para além das circunstâncias do tempo, e das questões que à sua volta se
levantaram, “The Life and Death of Colonel Blimp”, surge hoje como uma das
grandes obras primas da história do cinema.
Manuel Cintra Ferreira
Folha da
Cinemateca Portuguesa
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