Título em
Portugal: As Crianças do Paraíso
Realizador: Marcel Carné
Ano: 1945
País: França
Argumentista:
Jacques Prévert
Fotografia:
Roger Hubert e Marc Fossard
Elenco
principal: Arletty, Jean-Louis Barrault, Maria Casarès, Pierre Brasseur
Duração: 3
horas e 2 minutos
Marcel
Carné é um pequeno capitulo, Jacques Becker uma nota de rodapé: a genialidade
de Jean Renoir fez baixas. E, no entanto, este “Les enfants du paradis” (As
Crianças do Paraíso, 1945) permanece um marco, o filme de que se fala quando se
fala de Carné, um expoente do realismo poético francês numa época em que a
produção gaulesa conseguia ombrear com a produção americana, último filme da
era dourada que a Segunda Guerra Mundial destruiu.
A uma primeira vista, “Les enfants du paradis” parece
um evidente modelo de filme escapista, como o Musical durante a Grande
Depressão, mas a produção da obra foi tudo menos pacífica. Iniciadas as
filmagens em Nice, em plena República de Vichy, com a permissão dos censores
colaboracionistas, viu o financiamento italiano, com que havia sido planeado,
claudicar aquando da invasão da Sicília pelos Aliados. Entre o pára-arranca
ordenado pelas autoridades e a deslocação das filmagens para Paris e
subsequente regresso a Nice, passaram-se dois anos de filmagens. Entre a
equipa, um dos actores foi preso pela Gestapo em pleno cenário e o cenógrafo
Alexandre Trauner e o compositor Joseph Kosma, judeus, trabalharam todo o filme
na clandestinidade. Por último, como a direcção cultural da República de Vichy
só permitia filmes até 90 minutos de duração, “Les enfants du paradis” foi
dividido em duas partes de 90 minutos, sendo apenas exibido com os seus 180
minutos de duração depois da Guerra.
História de como quatro homens possuem a mesma mulher,
Garance (interpretada pela esfíngica Arletty), sem nunca a conseguirem amar
plenamente, “Les enfants du
paradis” conta com inspiração verídica para a sua intriga.
Baptiste Deburau (1796-1846) e Frederick Lematre (1800-1876) foram dois dos
mais famosos actores da sua época e Pierre-Francois Lacenaire (1800-1836) um
famoso criminoso acerca de quem se diz ter sido a inspiração de Dostoievski
para o Raskolnikov de “Crime e Castigo”. Porém, e se mais provas fossem
precisas, convém lembrar que ambas as partes do filme começam e acabam com
cortinas, respectivamente, a erguerem-se e a descerem. O fulcro da obra reside
na relação do teatro com a vida, de duas maneiras diferentes. A primeira, na
medida em que os actores, na sociedade francesa do século XIX, representavam
como que um semi-grupo social, com as suas rotinas e o seu próprio lugar,
geográfica e sociologicamente; a segunda porque, nas personagens principais,
toda a sua conduta mimetiza a forma de teatro que preferem: Baptiste, o mimo, é
tímido e sonhador, rejeitando a carnalidade dos seus sentimentos por Garance,
preferindo-lhes a idealização; Lemaitre é verboso, carnal e libertino,
preferindo a tragédia shakespeariana ou a comédia como formas de
expressão: o Conde detesta teatro e só conhece o mundo dos duelos e da
imposição forçosa e material; e Lacenaire encena a sua vida de crime com a
desfaçatez de uma farsa, indo para o cadafalso com um sorriso no rosto. Nesse
sentido, Garance pode ser vista como uma figura teatral (e é-o numa pantomina),
mas é também a mais humana das suas personagens, a mais disponível para amar de
todas, incapaz de entrar no jogo das outras personagens, obedecendo apenas,
mesmo que apenas interiormente, à sua vontade e à força das suas paixões. Ao
ser a mais humana, é também ela que quebra o tecido harmónico que perfaz o
mundo teatral: ela defende que o amor é simples, a realidade e os conflitos
entre os homens que a querem mostram o contrário. O drama humano, através da
disrupção que a sua beleza traz, não acaba num final feliz, nem todos os papéis
são recompensados ou punidos em conformidade (veja-se Nathalie, que tão bem
desempenhou o papel de esposa de Baptiste e se vê abandonada no final do
filme). Como nos melhores exemplos do chamado realismo poético francês, o
fatalismo é a palavra de ordem e aqui prende-se com a impossibilidade de
encontrar na vida a mesma perfeição que se encontra no palco.
Pela parte de quem assina este texto, os méritos
de “Les enfants du paradis” são
evidentes: a forma agradável como o seu tempo passa; a sumptuosidade e
verosimilhança dos seus décors e da sua reconstituição de época; a imensa
musicalidade dos diálogos de Jacques Prévert, virtuosos na poesia como no
vernáculo; o classicismo sem esforço da câmara de Carné, ainda mais complicado
tendo em conta as dificuldades de produção da obra. Ainda assim, a alegada
visão política possível de atribuir à obra em que Garance, com a sua liberdade
de escolha, seria um exemplo da capacidade de resistência da França ocupada, o
Conde a brutalidade do regime nazi, a arte teatral de Baptiste e Lemaitre a
alma inabalável do povo francês e Larcenaire um símbolo maior de uma
perturbação da ordem estabelecida, parece-nos rebuscada, sendo mais verosímil
ver o filme na sua literalidade de melodrama. Mas até que ponto, considerando o
resultado final e o que fariam posteriormente, nesta ligação entre teatro,
cinema e vida, o próprio Renoir, Ophüls e até cineastas modernos como
Bergman e Rivette, não estaremos perante uma espécie de “Gone With the Wind” (“E
Tudo o Vento Levou”, Victor Flemming, 1939) francês, um filme exemplificativo
de uma era dourada, a um tempo zénite e último estertor, mais importante pelo
que representa do que pelo que é individualmente? Fica para cada espectador
decidir.
Miguel Domingues
Blog À Pala
de Walsh
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