segunda-feira, 8 de abril de 2024

Million Dollar Baby de Clint Eastwood

 


Título em Portiugal: Million Dollar Baby – Sonhos Vencidos

Realizador: Clinton Eastwood

Ano: 2004

País: Estados Unidos

Argumentista: Paul Haggis

baseado na colectânea de contos “Rope Burns: Stories from the Corner” de F.X. Toole (1930-2002)

Fotografia: Tom Stern

Elenco principal: Clint Eastwood, Hilary Swank, Morgan Freeman, Jay Baruchel, Margo Martindale

Duração: 2 horas e 12 minutos

 

"Million Dollar Baby" de Clint Eastwood é uma obra-prima, pura e simples, profunda e verdadeira. Conta a história de um velho treinador de boxe e uma provinciana miúda que pensa que pode ser pugilista. É narrado por um “ex-boxeur” que é o melhor amigo do treinador. Mas não é um filme de boxe. É um filme sobre um pugilista. O que mais é, tudo o que é, quanto profundo é, que poder emocional contém, não pode ser referenciado nesta crítica, porque iria detiorar a experiência de acompanhar esta história até aos segredos mais profundos da vida e da morte. Este é o melhor filme do ano.

Eastwood interpreta o treinador, Frankie, que dirige um ginásio decadente em Los Angeles e, ao mesmo tempo, lê poesia. Hilary Swank interpreta Maggie, do sudoeste do Missouri, que trabalha como empregada de mesa desde os 13 anos e vê o boxe como a única maneira de escapar deste trabalho.

De resto, ela própria diz: “Eu poderia muito bem voltar para casa e comprar uma velha roulote, arranjar uma fritadeira grande e alguns Oreos”. Morgan Freeman é Scrap, que foi dirigido por Frankie na luta pelo título de boxe. Agora mora numa sala do ginásio e é parceiro de Frankie em conversas que se prolongam ao longo de décadas. Quando Frankie se recusa a treinar uma "miúda", é Scrap quem o convence a dar uma chance a Maggie: "Ela cresceu a saber apenas uma coisa. Que é só lixo."

Estas três personagens são encaradas com uma clareza e verdade raras em filmes. Eastwood, que não carrega um grama extra no seu magro corpo, também não coloca nenhuma “gordura” na tela: mesmo quando o filme se aproxima da emoção profunda das suas cenas finais, ele não busca sentimentos fáceis, mas considera estas pessoas de forma equilibrada, enquanto elas fazem o que têm de fazer.

Alguns realizadores perdem o foco à medida que envelhecem. Outros ganham, aprendendo a contar uma história que contém tudo o que é preciso e absolutamente nada mais. "Million Dollar Baby" é o 25º filme de Eastwood como realizador, e o melhor. Sim, “Mystic River” é um óptimo filme, mas este encontra a simplicidade e a franqueza da narrativa clássica; é o tipo de filme em que você fica sentado em silêncio no cinema e é profundamente envolvido por vidas que passam a ser importantes para si.

Morgan Freeman é o narrador, tal como foi em “The Shawshank Redemption”, com que este filme se assemelha na forma como o personagem Freeman descreve um homem que se tornou o seu “estudo” ao longo da vida. A voz é monótona e factual: você nunca ouve Scrap colocar um efeito ou alterar o tom nas suas palavras. Ele só quer contar o que aconteceu. Ele diz como a miúda entrou no ginásio, como ela não quis ir-se embora, como Frankie finalmente concordou em treiná-la e o que sucedeu então. Mas Scrap não é apenas um observador; o filme dá-lhe vida própria quando os outros estão fora da tela. O filme é sobre estas três pessoas juntas.

Hilary Swank está surpreendente como Maggie. Cada nota é verdadeira. Ela reduz Maggie a uma intensidade feroz. Repare na cena em que ela e Scrap se sentam numa lanchonete, e Scrap lhe conta como perdeu a visão de um olho e como Frankie se culpa por não ter lançado a toalha ao chão. É uma cena importante para Freeman, mas quero que observe como Swank mostra que Maggie não faz absolutamente nada e apenas ouve. Sem “reações”, sem pequenos acenos de cabeça, sem linguagem corporal, excepto a perfeita quietude, a profunda atenção e um olhar inabalável.

Há outra cena, à noite, dentro de um carro, depois de Frankie e Maggie visitarem a família de Maggie. A visita não correu bem. A mãe de Maggie é interpretada por Margo Martindale como um monstro ignorante e egoísta. “Não tenho ninguém além de ti, Frankie”, diz Maggie. Isto é verdade, mas não cometa o erro de pensar que existe um romance entre eles. É diferente e mais profundo do que isso. Ela conta a Frankie uma história que envolve o seu pai, a quem ela amava, e um cão velho que ela também amava.

Veja como o diretor de fotografia Tom Stern usa a luz nesta cena. Em vez de usar as habituais “luzes do painel”, que misteriosamente parecem iluminar todo o banco da frente, observe como ele faz com que os seus rostos deslizem para dentro e para fora da sombra, e como às vezes não conseguimos vê-los, apenas ouvi-los. Observe como o ritmo dessa iluminação combina com o tom e ritmo das palavras, como se o efeito visual acariciasse a conversa.

É um filme com um negro quadro geral: muitas sombras, muitas cenas nocturnas, personagens que parecem recuar para destinos privados. É um “filme de boxe”, no sentido em que acompanha a carreira de Maggie e possui diversas cenas de luta. Ela vence desde o início, mas a questão não é essa; "Million Dollar Baby" é sobre uma mulher determinada a fazer algo por si mesma, e um homem que não quer fazer nada por essa mulher e que finalmente fará tudo.

O guião é de Paul Haggis, que trabalhou principalmente para televisão, mas com este ganhou uma nomeação para um Oscar. Outras nomeações, possíveis Oscares, irão para Swank, Eastwood, Freeman, para o filme e para muitos técnicos - e possivelmente para a trilha musical original, composta por Eastwood, que sempre faz o que é exigido e nunca distrai.

Haggis adaptou a história de “Rope Burns: Stories From the Corner”, um livro de 2000 de Jerry Boyd, um “manager” de boxe com 70 anos, que o subscreveu com o pseudónimo de "F.X. Toole". O diálogo é poético, mas nunca sofisticado. "Quanto é que ela pesa?" – pergunta Maggie a Frankie sobre a filha que ele não vê há muitos anos. "Os problemas na minha família apareceram a pouco e pouco." E quando Frankie vê os pés de Scrap em cima da mesa: “Onde estão os teus sapatos?” Scrap: "Estou a arejar os meus pés." E a conversa sobre os pés continua por quase um minuto, revelando a paciência do filme em evocar esta personagem.

Eastwood está atento aos personagens coadjuvantes, que fazem o mundo em seu redor parecer mais real. O mais inesperado é um padre católico visto, simplesmente, como um homem bom; todos os filmes parecem dar um toque negativo ao clero atualmente. Frankie vai à missa todas as manhãs e faz suas orações todas as noites, e o padre Horvak (Brian F. O'Byrne) observa que qualquer pessoa que vai à missa diariamente durante 23 anos deve carregar uma grande culpa. Frankie pede-lhe conselhos num momento crucial, e o padre não responde com a ortodoxia da igreja, mas com uma visão sábia: "Se tu fizeres isso, estarás perdido, num lugar tão profundo que nunca te encontrarás." Repare também como Haggis põe Maggie a usar a palavra “congelada”, que é o que uma miúda sem instrução do interior poderia dizer, mas também é a única palavra perfeita que expressa o que mil não conseguiriam.

Hoje em dia, os filmes costumam ser feitos de efeitos e sensações. Este é composto por três pessoas e de como as suas ações surgem de quem elas são e por quê. Nada mais. Mas isso não é tudo?

Roger Ebert


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