Título em
Portiugal: Million Dollar Baby – Sonhos
Vencidos
Realizador: Clinton Eastwood
Ano: 2004
País:
Estados Unidos
Argumentista:
Paul Haggis
baseado na colectânea de contos “Rope Burns: Stories from the
Corner” de F.X. Toole (1930-2002)
Fotografia:
Tom Stern
Elenco
principal: Clint Eastwood, Hilary Swank, Morgan Freeman, Jay Baruchel, Margo
Martindale
Duração: 2
horas e 12 minutos
"Million
Dollar Baby" de Clint Eastwood é uma obra-prima, pura e simples, profunda
e verdadeira. Conta a história de um velho treinador de boxe e uma provinciana
miúda que pensa que pode ser pugilista. É narrado por um “ex-boxeur” que é o
melhor amigo do treinador. Mas não é um filme de boxe. É um filme sobre um pugilista.
O que mais é, tudo o que é, quanto profundo é, que poder emocional contém, não
pode ser referenciado nesta crítica, porque iria detiorar a experiência de acompanhar
esta história até aos segredos mais profundos da vida e da morte. Este é o
melhor filme do ano.
Eastwood
interpreta o treinador, Frankie, que dirige um ginásio decadente em Los Angeles
e, ao mesmo tempo, lê poesia. Hilary Swank interpreta Maggie, do sudoeste do
Missouri, que trabalha como empregada de mesa desde os 13 anos e vê o boxe como
a única maneira de escapar deste trabalho.
De
resto, ela própria diz: “Eu poderia muito bem voltar para casa e comprar uma
velha roulote, arranjar uma fritadeira grande e alguns Oreos”. Morgan Freeman é
Scrap, que foi dirigido por Frankie na luta pelo título de boxe. Agora mora numa sala
do ginásio e é parceiro de Frankie em conversas que se prolongam ao longo de
décadas. Quando Frankie se recusa a treinar uma "miúda", é Scrap quem
o convence a dar uma chance a Maggie: "Ela cresceu a saber apenas uma
coisa. Que é só lixo."
Estas três
personagens são encaradas com uma clareza e verdade raras em filmes. Eastwood,
que não carrega um grama extra no seu magro corpo, também não coloca nenhuma “gordura”
na tela: mesmo quando o filme se aproxima da emoção profunda das suas cenas
finais, ele não busca sentimentos fáceis, mas considera estas pessoas de forma
equilibrada, enquanto elas fazem o que têm de fazer.
Alguns realizadores
perdem o foco à medida que envelhecem. Outros ganham, aprendendo a contar uma
história que contém tudo o que é preciso e absolutamente nada mais.
"Million Dollar Baby" é o 25º filme de Eastwood como realizador, e o
melhor. Sim, “Mystic River” é um óptimo filme, mas este encontra a simplicidade
e a franqueza da narrativa clássica; é o tipo de filme em que você fica sentado
em silêncio no cinema e é profundamente envolvido por vidas que passam a ser
importantes para si.
Morgan
Freeman é o narrador, tal como foi em “The Shawshank Redemption”, com que este
filme se assemelha na forma como o personagem Freeman descreve um homem que se
tornou o seu “estudo” ao longo da vida. A voz é monótona e factual: você nunca
ouve Scrap colocar um efeito ou alterar o tom nas suas palavras. Ele só quer contar
o que aconteceu. Ele diz como a miúda entrou no ginásio, como ela não quis ir-se
embora, como Frankie finalmente concordou em treiná-la e o que sucedeu então.
Mas Scrap não é apenas um observador; o filme dá-lhe vida própria quando os
outros estão fora da tela. O filme é sobre estas três pessoas juntas.
Hilary Swank
está surpreendente como Maggie. Cada nota é verdadeira. Ela reduz Maggie a uma
intensidade feroz. Repare na cena em que ela e Scrap se sentam numa lanchonete,
e Scrap lhe conta como perdeu a visão de um olho e como Frankie se culpa por
não ter lançado a toalha ao chão. É uma cena importante para Freeman, mas quero
que observe como Swank mostra que Maggie não faz absolutamente nada e apenas
ouve. Sem “reações”, sem pequenos acenos de cabeça, sem linguagem corporal,
excepto a perfeita quietude, a profunda atenção e um olhar inabalável.
Há outra
cena, à noite, dentro de um carro, depois de Frankie e Maggie visitarem a
família de Maggie. A visita não correu bem. A mãe de Maggie é interpretada por
Margo Martindale como um monstro ignorante e egoísta. “Não tenho ninguém além
de ti, Frankie”, diz Maggie. Isto é verdade, mas não cometa o erro de pensar
que existe um romance entre eles. É diferente e mais profundo do que isso. Ela
conta a Frankie uma história que envolve o seu pai, a quem ela amava, e um cão velho
que ela também amava.
Veja como o
diretor de fotografia Tom Stern usa a luz nesta cena. Em vez de usar as
habituais “luzes do painel”, que misteriosamente parecem iluminar todo o banco
da frente, observe como ele faz com que os seus rostos deslizem para dentro e
para fora da sombra, e como às vezes não conseguimos vê-los, apenas ouvi-los.
Observe como o ritmo dessa iluminação combina com o tom e ritmo das palavras,
como se o efeito visual acariciasse a conversa.
É um filme
com um negro quadro geral: muitas sombras, muitas cenas nocturnas, personagens
que parecem recuar para destinos privados. É um “filme de boxe”, no sentido em
que acompanha a carreira de Maggie e possui diversas cenas de luta. Ela vence
desde o início, mas a questão não é essa; "Million Dollar Baby" é
sobre uma mulher determinada a fazer algo por si mesma, e um homem que não quer
fazer nada por essa mulher e que finalmente fará tudo.
O guião é de
Paul Haggis, que trabalhou principalmente para televisão, mas com este ganhou
uma nomeação para um Oscar. Outras nomeações, possíveis Oscares, irão para
Swank, Eastwood, Freeman, para o filme e para muitos técnicos - e possivelmente
para a trilha musical original, composta por Eastwood, que sempre faz o que é
exigido e nunca distrai.
Haggis
adaptou a história de “Rope Burns: Stories From the Corner”, um livro de 2000
de Jerry Boyd, um “manager” de boxe com 70 anos, que o subscreveu com o
pseudónimo de "F.X. Toole". O diálogo é poético, mas nunca
sofisticado. "Quanto é que ela pesa?" – pergunta Maggie a Frankie
sobre a filha que ele não vê há muitos anos. "Os problemas na minha
família apareceram a pouco e pouco." E quando Frankie vê os pés de Scrap
em cima da mesa: “Onde estão os teus sapatos?” Scrap: "Estou a arejar os
meus pés." E a conversa sobre os pés continua por quase um minuto, revelando
a paciência do filme em evocar esta personagem.
Eastwood
está atento aos personagens coadjuvantes, que fazem o mundo em seu redor
parecer mais real. O mais inesperado é um padre católico visto, simplesmente,
como um homem bom; todos os filmes parecem dar um toque negativo ao clero
atualmente. Frankie vai à missa todas as manhãs e faz suas orações todas as
noites, e o padre Horvak (Brian F. O'Byrne) observa que qualquer pessoa que vai
à missa diariamente durante 23 anos deve carregar uma grande culpa. Frankie
pede-lhe conselhos num momento crucial, e o padre não responde com a ortodoxia
da igreja, mas com uma visão sábia: "Se tu fizeres isso, estarás perdido, num
lugar tão profundo que nunca te encontrarás." Repare também como Haggis põe
Maggie a usar a palavra “congelada”, que é o que uma miúda sem instrução do
interior poderia dizer, mas também é a única palavra perfeita que expressa o
que mil não conseguiriam.
Hoje em dia,
os filmes costumam ser feitos de efeitos e sensações. Este é composto por três
pessoas e de como as suas ações surgem de quem elas são e por quê. Nada mais.
Mas isso não é tudo?
Roger Ebert
Sem comentários:
Enviar um comentário