Título em
Portugal: Tabu
Realizador: F. W. Murnau
Ano: 1931
País:
Estados Unidos
Argumentista:
F. W. Murnau e Robert J. Flaherty
Fotografia:
Floyd Crosby
Elenco
principal: Matahi, Anne Chevalier
Duraçâo: 1
hora e 24 minutos
Não, não tinha pensado começar esta série
sobre “os mais belos dos filmes” com “Tabu”. Foi ideia de última hora, quando reparei, (…), que Godard
o citou para explicar o que queria dizer com o superlativo absoluto de beleza.
Acaso?
Mas foi acaso por acaso que, entre a sexta-feira
passada e a sexta-feira de hoje, revi “Tabu” duas vezes? E foi acaso por acaso que o revi na mais
bela das cópias que de “Tabu” me
foi dado ver, essa da Cinemateca de Praga que agora passou na cinemateca? E foi
acaso por acaso que, com dois dias de intervalo, pude comparar “Tabu” com “Sunrise”, o filme de Murnau que, até
Janeiro de 1996, era incontestavelmente o meu favorito?
E foi acaso por acaso que reli uma velha
critica (1953) de Maurice Scherer (= Eric Rohmer) onde se diz: “Os referendos
estão na moda. Desculpem se me deixei apanhar. Fazer listas de preferência, à
hora do chá, entre amigos, é um jogo de salão agradável e que só depende da
nossa disposição no momento (…) Mas não quis perder a ocasião para dizer - como
uma recente visão de “Tabu” mo
confirmou - que este filme é, na verdade, a obra-prima do seu autor, o maior
filme do maior autor de filmes”. Se acaso tudo são acasos, acaso sou eu também.
Foi relativamente por acaso que F. W.
Murnau decidiu, em Abril de 1929, aos 40 anos, partir para Taiti e filmar à luz
dos mares do sul. Tinha chegado à América cerca de três anos antes (Julho de
1926) aclamado como o “génio alemão”. Tinha filmado - 1927 – “Sunrise”, Oscar para a melhor
“produção de qualidade artística”, no primeiro ano em que houve prémios da
academia. Depois (“The Four Devils”, “City Girl”) foi forçado a vergar-se
às regras da Fox. Depois, “por acaso”, conheceu David Flaherty, irmão de Robert
Flaherty, que estava a tentar convencer a mesma Fox a fazer um filme em Taiti.
Depois, esse filme malogrou-se. E, depois, Murnau convidou David Flaherty para
jantar, no solar em que vivia, sozinho com os criados, numa das colinas mais
altas de Hollywood. Parece que se sentaram os dois sozinhos, numa mesa enorme,
na enorme casa de jantar de Murnau. E, à hora em que o jovem Hutter se feriu
com a faca e derramou algumas gotas de preciosíssimo sangue (estou a referir-me
a “Nosferatu”, para quem
não saiba), Murnau disse baixinho ao irmão de Flaherty: “Queres vir comigo para
Taiti?” No dia seguinte, antes do nascer do dia, partiram para o México, onde
estava Bob. Poucos dias depois, com o muito dinheiro ganho por Murnau, formaram
uma sociedade - a Colorart - para produzir uma série de filmes nas ilhas dos
mares do sul. O primeiro devia chamar-se “Turia” e contava a história de um pescador de pérolas.
“Bali é a última Thule dos meus desejos” teria dito Murnau, antes de embarcar,
no fabuloso iate que comprou (vê-se no filme) e a que também deu o nome dessa
ilha: “Bali”.
Daí por diante e até a primeira versão do
argumento de “Tabu” se
concluir (Dezembro de 1929, depois de um longo périplo de Murnau pelo
Arquipélago das Marquesas e pelas ilhas Paumotu), tudo separou os dois
cineastas. Flaherty sonhava encontrar o paraíso na terra e o mundo antes do
pecado original. Murnau já sabia que “nessa terra / também, também / o mal não
cessa, não dura o bem”. O “terror antigo”, o terror de Nosferatu, foi o que
encontrou em Bora-Bora ou em Tokapoto, as ilhas de rodagem. Flaherty
assombrou-se: “Como são profundas as inibições destes alemães!... Como é
terrível a sua vontade de domínio!... Como é imenso o seu fatalismo!...”. Como
não se assombraria? “Tabu”,
às vezes descrito como um documentário de Murnau e de Flaherty, nada (ou
pouquíssimo) tem de Flaherty e é tudo menos um documentário. Murnau, que chegou
a Taiti como Nosferatu, num barco a velas (e como é terrível e ameaçadora a
primeira visão do iate, apenas ou por causa da imensa beleza dele e da imensa
beleza do plano), é o filme do encontro de Murnau com a Morte, essa morte com
que mil vezes foi ameaçado durante as rodagens (Janeiro a Outubro de 1930),
essa morte que o apanhou, numa curva da estrada, a 11 de Março de 1931, aos 42
anos, uma semana antes da estreia mundial de “Tabu”.
“Nosferatu”. “Um nome
que soa como a chamada nocturna da Ave da Morte”, para citar o primeiro
intertítulo do filme de Murnau de 1922, não é, em “Tabu”, explicitamente, um morto-vivo ou um vampiro? Talvez não
seja. Mas se o não for, quem é então Hitu, o prodigioso velho, de olhar
inexorável, que, no iate de Murnau, chega a Bora-Bora para lançar o seu tabu
sobre Reri, a virgem sagrada?
Antes, víramos planos de ofuscante beleza em que os
mais belos corpos masculinos - donde logo emerge Matahi, o protagonista -
pescam como se dançassem ou dançam como se pescassem. É o mar e no mar. Uma
simples panorâmica (simples?) e o mundo roda 180º para os planos subjectivos
das mulheres em flor, sob as cascatas. Passagem tão misteriosa como a
misteriosa passagem do mundo do lago para o do carro eléctrico, em “Sunrise”, depois de George O’Brien
ter tentado matar Janet Gaynor.
É um allegro prestíssimo esse início
coral, a que se sucede o adágio, no plano inadjectivável em que Reri encosta a
cabeça ao peito de Matahi e para sempre fica colada a ele.
É um pouco mais tarde (precedido pelo grande, grande
plano do mensageiro dos apelos) que surge o navio fantasma, com o velho Hitu.
Antes de o vermos, vemos uma grande onda
preta. E Reri tapou os olhos ao ouvir o tabu. Flores para os mortos.
Matahi reaparece depois, ainda solto, ainda
resplandecente. E sempre me pareceu que, logo que o viu, o velho soube tudo (se
é que o não sabia antes). Há um plano - brevíssimo - em que quase podemos dizer
que uma certa compaixão se apodera dele. Mas, como as nuvens, passou.
Se não é Nosferatu, quem é aquele velho sempre
recortado contra o vulcão de Paia? Gauguin, que tantas vezes Murnau evocou
em “Tabu” e
expressamente no plano de Matahi, sentado na cabana, tão farto de esperar bem,
contou-nos que o Deus Ora desceu do alto dessa montanha à procura de uma mulher
transformada em coluna de fogo. E Reri - a mulher que vemos a chorar no
lancinante ritual da despedida da mãe - como fogo se acende quando, na dança
sagrada, Matahi, despertado pela música, subitamente se lhe vem juntar,
afastando todos os corpos para dominar com a sombra dele a sombra da mulher. Se
não é Nosferatu, quem é Hitu, o velho que retira a grinalda e corta o amor?
À luz de Hina, a lua, vem depois a noite em que Matahi
arranca Reri ao barco da morte e a leva com ele para a ilha dos chineses e das
pérolas.
Mas, senão é Nosferatu, quem é esse velho
que um tempo, algum tempo, muito tempo depois, desembarca na ilha, em que os
amantes se supunham a salvo, para cumprir a maldição?
Não o vemos chegar. Tudo o que vemos é,
nessa noite, Reri acordar na cabana, como as crianças acordam dos pesadelos,
soltar-se dos braços de Matahi e olhar para a porta, deixada aberta. Todo o
terror do mundo nos olhos dela. Depois, tapa-os com as mãos. Contraplano e
vemos, no portal, o velho, de branco e de pé. A câmara volta a Reri, que lentamente
tira os braços dos olhos. Contraplano e não está lá ninguém. Visão? Sonho?
Premonição? Quem souber decidir, sabe o segredo da arte de Murnau.
No dia seguinte, um dos pescadores da ilha é comido
por um tubarão. As autoridades declaram essas águas tabu. A palavra TABU
aparece no filme. O que aparece é sempre menos do que o que não aparece. Que é
esse tabu, decretado pelos homens, face ao outro, que veio do fundo dos mares e
dos tempos?
Nessa noite, há a luz sobre os amantes. Matahi dorme,
de novo, dorme sempre quando Reri vela, como ela dormiu, depois, quando ele foi
pescar a pérola negra. E se não é de Nosferatu, de quem é essa sombra esguia
que, como uma seta, deixa a mensagem que anuncia a morte de Matahi se, passados
três dias, ela não o seguir? Os corpos parecem agora as pietás de
Antonello. A fuga de ainda, gora-se. Em montagem paralela, o desafio ao tubarão
da pérola negra e a carta de Reri do imenso adeus.
E se não é Nosferatu, quem é o Caronte que conduz o
barco que leva Reri de volta? E se não é Nosferatu, quem é o velho que corta a
corda da vida no momento em que Matahi atinge o barco para lhe roubar Reri?
E o maior milagre que já vi no cinema é a
perseguição final, quando Matahi se lança atrás do barco. A pé, numa embarcação
e, depois, finalmente, a nado, a câmara voa em planos fixos, atravessando
terras e mares, para figurar o impossível - possível: Matahi a atingir a
velocidade do vento que sopra as velas e a tocar na barca, onde Nosferatu
acabou de sepultar Reri. Mas, quando a corda é cortada, tudo se torna de uma
lentidão imensa, enquanto o barco se afasta e Matahi se afunda nas águas,
nadando, nadando sempre, como se esse movimento já sem razão fosse a última razão
possível.
Numa carta à mãe, escrita no final da
rodagem, Murnau disse: “Estou enfeitiçado por estes lugares (…) Às vezes, sonho
que gostava de voltar a casa. Mas a minha casa não é em parte nenhuma (…) Em
casa nenhuma, em terra nenhuma e com nenhuma pessoa.”
Cumpriu-se a maldição que uma lenda antiga atribui a
um feiticeiro de Bora-Bora: “Quando o homem branco ouvir o grito da Ave da
morte, o Diabo Oramatua-hiaro-rorua o levará.”
Se o cinema, como disse Henry Miller, é “a consciência
visual da morte” nunca a vimos de tão perto como em “Tabu” de Murnau. Depois deste
filme, nenhum outro pode ser “o mais belo dos filmes”.
Contraplano. E repito: nenhum outro.
João Bénard da Costa
Revista Foco