quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Splendor in the Grass de Elia Kazan

 


Título em Portugal: Esplendor Na Relva

Realizador: Elia Kazan

Ano: 1961

País: Estados Unidos

Argumentista: William Inge

Fotografia: Boris Kaufman

Elenco principal: Natalie Wood, Warren Beatty, Pat Hingle, Barbara Loden, Audrey Christie

Duração: 2 horas e 4 minutos

 

“Eu sei que Deannie Loomis não existe/ mas entre as mais essa mulher caminha/ e a sua evolução segue uma linha/ que à imaginação pura resiste.”

Começa assim o soneto intitulado “Esplendor na Relva”, que Ruy Belo inseriu em “Homem de Palavra[s]”. Deannie Loomis (aliás Wilma Deannie Loomis) é o nome da protagonista interpretada pela fabulosa Natalie Wood. O pretexto (em sentido literal) é o filme de Elia Kazan “Splendor in the Grass” (1961), com argumento de William Inge.

Hoje, o filme ganhou ressonâncias míticas, associado aos idos de 60 e aos Maios de tal década. Na altura, não as teve e foi mesmo, da América a Portugal, implacavelmente zurzido pela crítica que o achou piegas e cabotino. O público também não ligou peva. Mas para alguns – poucos, e certamente não felizes – foi paixão tão devastadora como a que, no filme, os adolescentes Deannie Loomis e Bud Stamper (Warren Beatty) tiveram um pelo outro. Ruy Belo foi desses. Aliás, não certamente por acaso, foi ele o único poeta que conheço a cantar as duas mulheres mais intensas dos “late fifties” e dos “early sixties”: Marilyn Monroe (esse assombroso poema chamado “Na Morte de Marilyn”, que vem no “Transporte do Tempo” e em que nos pede para “em vez de Marilyn dizer mulher”) – e Natalie Wood.

Eu sei que Ruy Belo não cantou Natalie Wood mas Deannie Loomis. Mas também sei que Natalie Wood “não existe/mas entre as mais”, etc. E há nesse verso um prodígio de adequação poética.

É quando se diz que “a sua evolução segue uma linha/ que à imaginação pura resiste”. Resiste à “imaginação pura” (no sentido de “pura imaginação”) ou resiste, “pura”, à imaginação? Ou seja, o adjectivo “pura” refere-se à imaginação ou a Deannie Loomis? Ou – pode ser também – à “linha que resiste”? Nestas três perguntas está o cerne de Deannie Loomis, de Natalie Wood e de “Splendor in the Grass”. São mulheres e filme da nossa imaginação? São mulheres e filme que resistem à nossa imaginação? Ou são mulheres e filme que resistem a uma linha evolutiva que só na nossa imaginação existe? Não sei, como provavelmente Ruy Belo não saberia, mas, como também ele escreveu (na “explicação preliminar” à 2ª edição do livro): “Ninguém no futuro nos perdoará não termos sabido ver esse verbo que tão importante era para os gregos.” E, em “Splendor in the Grass”, tudo está no ver, que traz a história dos meninos e moços do Kansas – meninos e moços dos anos 20, de antes da Depressão – à dimensão das mais belas histórias de amor e de morte jamais contadas.

Sirvo-me do exemplo mais conhecido, também poético, e que dá o título ao filme. No liceu de Natalie Wood, onde ela entrava sempre com três livros apertados ao peito, um deles de capa azul, a aula de literatura, nesse dia, não era sobre “Os Cavaleiros da Távola Redonda” mas sobre Wordsworth e a “Ode of Intimation to Immortality”.  Deannie/Natalie chegava de vestido “grenat” muito escuro, gola de rendas. Todas as colegas sabiam – e ela também, embora ninguém lho tivesse dito – que Bud/Warren, incapaz de separar mais tempo o desejo e o amor, tinha enganado, na véspera à noite, a fome do corpo dela, no corpo de Juanita, única da turma que não se ficava pelos beijos. Nada seria mais, para eles, como antes fora. Como também se diz no filme (noutro contexto), Deannie trazia, debaixo do vestido, o primeiro golpe na sua própria carne.

E é quando todo o mundo vacila à roda dela que a professora a interpela para lhe perguntar o que é que o poeta quis dizer com os versos famosos: “No, nothing can bring back the hour/ the splendor in the grass, the glory in the flower. “ Para a estúpida e pedagógica pergunta não há resposta, ou a esse nível só há a que Natalie Wood comoventemente tenta articular. Mas não é nada disso que o poeta quis dizer.

O que conta, o que o poeta quis dizer, é o que Natalie só naquela altura sente e sabe, ou pressente e entrevê. Por isso, o que conta e o que o poeta quis dizer é o espantoso “travelling” que arranca Deannie do lugar e a põe diante da professora atónita, depois aquele outro em que sai a correr da aula e nos atira com a porta na cara e, por fim, esse plano em que a vemos, sozinha, na profundidade de campo do corredor do liceu, até ir parar à enfermaria. Nesse minuto de cinema, sabemos, para além das palavras, que “that radiance that was once so bright/ Is now forever taken from my sight.” Irradiância que, no filme, foi “entre” o plano inicial (Deannie e Bud a namorar nas cataratas, e ela com tanto medo de não aguentar mais) e essa sequência, também nas cataratas, em que Bud fez com Juanita o que não fez com ela e de que essas cataratas são a mais poderosa das metáforas.

O “esplendor da relva” é o que vimos até à aula: são os planos em que se deita de bruços na cama (Warren Beatty deita-se da mesma maneira); é o búzio encostado ao ouvido; são os ursos de pelúcia coexistindo com o retrato dele; é o dia em que entrou no liceu ao lado dele, tão orgulhosa, de blusa amarela e saia branca; é o plano da ducha dos rapazes; é a noite de chuva no carro amarelo e Deannie dizer a Bud que ficará para sempre à espera dele; é uma saia cor-de-rosa que funde em negro; é, sobretudo, a estarrecedora sequência em que Bud a obriga a ajoelhar-se-lhe aos pés e ela desata a chorar. Aflitíssimo, Bud diz-lhe que era uma brincadeira. E ela a responder: “Não posso brincar com estas coisas. Eu era capaz de fazer tudo o que tu me pedisses. Tudo. Juro que era.”

Mas é depois da sequência da aula que o filme atinge o máximo de beleza e tensão, desde o longo período em que Deannie se isola até à crise que a leva ao manicómio. Natalie Wood começa por cortar os cabelos ao espelho (iniciaticamente) e, depois, veste-se de encarnadíssimo (“bandelette” encarnada, colar encarnado) para se oferecer a Bud na sequência da festa, para ser recusada por Bud e, depois, correr pelos “rails” até às cataratas (terceira e última presença delas no filme) e mergulhar nas águas, onde até a morte lhe frustram.

Mas nem Wordsworth nem Kazan terminam no desespero ou “nesse desespero”. Após os versos que dão título ao filme, Wordsworth diz: “We will grieve not, rather find/ strength in what remains behind.”

Não estou nada certo que seja “força” o que Natalie Wood encontrou na relva da clínica, entre velhas catalépticas e enfermeiras de olhar estranho. Não estou nada certo que seja “força” o que Warren Beatty encontrou na universidade para onde o mandaram, ou na noite de Nova York em que o pai lhe pagou uma “rapariga parecida com Deannie”. Mas “o que ficou para trás” , “isso”, introduz-se a cada plano do lento desmoronar deles, das famílias deles, da América da crise de 29, de um mundo com tais valores.

Elia Kazan disse preferir no filme a sequência em que Deannie regressa à casa paterna, ao que dizem “curada”, e conversa com a mãe que lhe diz que tudo o que fez foi para bem dela. Já está noiva do “rapaz de Cincinatti”, que conheceu no hospital e Bud já está casado com Angelina, que não tinha entrado na história e até já tem um bebé. Deannie vai visitá-los, com as amigas. Não há uma palavra sobre o passado e há só o passado. Depois do “esplendor na relva”, Bud fica com as capoeiras e ela com um companheiro das trevas. “Como numa tragédia grega: sabemos o que vai acontecer e só podemos ver o que acontece.”

Estas palavras são de Kazan. Mas esta “tragédia americana” não acaba em mortes violentas. Só na morte que cada um de nós traz dentro de nós, feita de tudo “what remains behind”. “We will grieve not” e, por isso mesmo, a nossa dor é muito maior. De Deannie Loomis e Bud Stamper me despeço com outro poema de Ruy Belo: “Mas agora que cantei da tristeza/não observo já os mais leves traços/ e a minha maneira de me matar/ é deixar cair ambos os braços.” É a isto que se chama “intimação à imortalidade”?

 

João Bénard da Costa

“Folha da Cinemateca” 


quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

The Ox-Bow Incident de William A. Wellmann

 


Título em Portugal: Consciências Mortas

Realizador: William A. Wellman

Ano: 1943

País: Estados Unidos

Argumentista: Lamar Trotti

segundo o romance homónimo de Walter Van Tilburg Clark (traduzido para português por Ana Maria Lopes e editado pelas Publicações Europa-América com o título “Incidente em Ox-Bow”)

Fotografia: Arthur C. Miller

Elenco principal: Henry Fonda, Dana Andrews, Harry Morgan, Frank Conroy, Harry Davenport, Anthony Quinn

Duração: 1 hora e 15 minutos

 

É quase inacreditável que um filme tão curto como “Consciências Mortas consiga trabalhar de maneira tão lúcida, madura e com uma dose certa de emoção uma série questões morais importantes não só dentro do universo do western, mas também dentro de toda a organização social que se dispõe a fazer e a falar sobre justiça, independente dos meios utilizados para tal.

 

O guião do filme é baseado em “The Ox-Bow Incident (1940), romance de estreia de Walter Van Tilburg Clark, e foi escrito de forma objectiva por Lamar Trotti, guionista que já havia passado por westerns como “Ouvem-se Tambores Ao Longe” (1939) de John Ford e “Brigham Young” (1940) de Henry Hathaway. A sua abordagem em “Consciências Mortas, todavia, foge aos parâmetros comuns do western clássico, não se preocupando com a criação de um herói nacional, uma acção épica ou o conflito entre colonos e indígenas. O filme é um libelo de carácter psicológico e extremamente pessimista contra a acção dos que optam por fazer justiça com as próprias mãos.

 

Para tornar isto ainda mais contundente, a narrativa apresenta-nos numa base cíclica, começando com dois homens (Henry Fonda e Harry Morgan) chegando a uma cidade da qual estiveram afastados por longo tempo. Os cavalos chegam cansados e não há ninguém à vista. Um cachorro cruza a estrada e desaparece de um lado da tela. Após os eventos ocorridos durante o filme, exactamente todas essas coisas voltam a acontecer: os mesmos dois homens partem com seus cavalos pelo mesmo caminho, não há ninguém à vista e o mesmo cachorro cruza a tela, no sentido oposto.

A estrutura narrativa e a enxuta composição formal dos acontecimentos fazem com que esses personagens pareçam ainda mais reais, como se fossem parte de uma reportagem qualquer, o relato comum de uma tragédia observada por dois forasteiros – tanto os protagonistas como nós, espectadores – que ao chegarem a um lugar onde já estiveram antes, se deparam com uma situação de caça ao homem, onde a vontade de justiça é a última coisa a ter em consideração. Junte-se a isto um fio ténue de informação, atitudes precipitadas e interesses ou fetiches pessoais ocultos e então teremos o cenário sociológico e até psicológico que dá o tom ao filme.

É impossível não fazer uma leitura social de “Consciências Mortas. O filme foi assim concebido, mas permite ir mais além e olhar no fundo da alma do cowboy, do rancheiro, do polícia, do prefeito da cidade e inquiri-los à distância: o que querem com isto? O que querem encobrir, fingir, sublimar, esquecer e sentir ao condenarem sem julgamento pessoas que suspeitam ser culpadas por um crime?

 

Entrecruzado como o tema principal, aparecem ainda histórias relevantes, como a complexa relação entre pai e filho; o papel de Rose (Mary Beth Hughes) em relação ao seu esposo e ao antigo amante; a amizade entre Gil e Art e a crítica ao sistema judicial, infestado de contradições, quase sempre lento, quase sempre passível de ser enganado por circunstâncias atenuantes forjadas e quase sempre ineficiente. Em “Consciências Mortas”, William A. Wellman orquestra estas questões com densidade cada vez maior, partindo da insatisfação e motivos pessoais do povo de uma cidade para realizar algo que denominam por justiça e, em contrapartida, naquilo em que o mesmo povo se transforma ao tomar para si o papel de juiz, júri e executor.

 

A direcção de Wellman é preciosa. O cineasta arranca de todo o elenco interpretações notáveis, com destaque para o mexicano interpretado por Anthony Quinn, os protagonistas Henry Fonda e Harry Morgan, a tocante actuação do normalmente medíocre Dana Andrews e todo o elenco de apoio é igualmente elogiável. A opção por cortes rápidos no início e mais lânguidos na segunda parte do filme também são um grande acerto do director, que, juntamente com a montagem de Allen McNeil, faz um bom uso do tempo interno e externo da obra, separando dois momentos na estrutura do enredo (o prólogo e o epílogo) e executando na perfeição todo o miolo dramático da narrativa.

“Consciências Mortas” envelheceu bem, tanto no conteúdo como no significado. Desde 1998, o filme consta nos quadros da National Film Registry da Biblioteca do Congresso (EUA), preservado pela sua significância cultural, história e estética. E não é para menos. A obra não é somente um impressionante western psicológico, ambientado em Nevada, no ano de 1885, mas também um convite à reflexão sobre a responsabilidade que temos diante de nós, quando nos dispomos a julgar alguém por alguma coisa.

 

Texto (adaptado) de Luiz Santiago

Blog Plano Crítico

 


quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

The Crowd de King Vidor



 

 

Título em português: A Multidão

Realizador: King Vidor

País: Estados Unidos

Ano: 1928

Argumento: King Vidor e John V. A. Weaver

Fotografia: Henry Sharp

Elenco principal: Eleanor Boardman, James Murray, Bert Roach

Duração: 1 hora e 38 minutos

 

Uma das obras-primas do cinema mudo, embora durante anos difícil de ver, “The Crowd” é o estudo inabalável de Vidor sobre o sonho americano. O filme é centrado em John Sims, que desde cedo imagina que está destinado a grandes coisas. Quando jovem, viaja para Nova York para fazer nome, mas com o tempo tem de aceitar uma existência implacavelmente comum – as dificuldades do trabalho, as brigas do casamento, etc. Vê-se no filme um exemplo supremo da capacidade de Vidor em pontuar um estilo naturalista com sequências de expressividade visual marcante, e a sua abordagem neste filme irá torna-lo altamente influente em realizadores posteriores, em particular nos neo-realistas italianos e, mais tarde, na Nouvelle Vague francesa.

Film at Lincoln Center

 

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Vredens dag de Carl Theodor Dreyer

 


Título em Portugal:  Dies Irae

Realizador: Carl Theodor Dreyer

Ano: 1943

País: Dinamarca

Argumento: Carl Theodor Dreyer, Poul Knudsen e Mogens Skot-Hansen

            segundo a peça de teatro “Anne Pedersdotter” de Hans Wiers-Jenssen

Fotografia: Karl Andersson

Elenco principal: Thorkild Roose, Lisbeth Movin, Preben Lerdorff Rye, Sigrid Neiliendam, Anna Svierkier

Duração: 1 hora e 40 minutos

 

Nove de abril de 1940. Como parte da Operação Weserübung, as tropas alemãs invadiram a Dinamarca a partir do porto de Copenhague. Em duas horas, o rei Christian X e sua base de governo assinaram a colaboração com os nazis e estabeleceram um acordo diplomático que deixava ao governo dinamarquês sua supremacia e governabilidade, factor decisivo para a permanência dos judeus no país durante a ocupação (1940 – 1945). Três anos depois, um filme dinamarquês viria incomodar as relações entre os dois países, evento que culminou com o exílio do cineasta Carl Theodor Dreyer, director de “Dies Irae” , obra que faz alusões à ocupação nazi. No seu exílio na Suécia, Dreyer permaneceria até o fim da Segunda Guerra Mundial.

 Dreyer foi educado sob a severidade dos dogmas luteranos, o que constatamos ser a linha temática central de sua produção cinematográfica. No seu primeiro filme, “Præsidenten” (1919), já se nota o rigor cénico e a opção pela naturalidade de expressão (que abolia completamente o uso de maquilhagem, algo que o director verificava pessoalmente nos protagonistas). O cineasta acreditava que os actores deveriam comunicar com o público apenas através dos olhares e das expressões típicas da psicologia das suas personagens. Com o intencionalmente expressionista “Mikaël” (1924), o dinamarquês confirmou a sua genialidade de composição cénica, cuja coroação mundial viria com “A Paixão de Joana d’Arc” (1928), marco inquestionável do cinema mudo. Mas a partir dessa obra, diversas dificuldades de produção resultantes do extremo rigor que o cineasta tinha ao dirigir os seus filmes tornaram o restante de sua carreira pouco prolífica, com um filme por década (!): “Vampyr” (1932), “Dies Irae” (1943), “A Palavra” (1955) e “Gertrud” (1964), o seu canto do cisne.

 A obra que provocou o exílio de Dreyer, “Dies Irae”, é uma alegoria à ocupação nazi, mas com uma história ambientada no ano de 1623. (…) Em plena Idade Moderna da Inquisição (…), Dreyer visita o imaginário popular e trabalha com a crise da fé e a relação da igreja e do povo com o paganismo. Uma forte dose de subjectividade mistura-se à trama realista e o desfecho da obra pode ser tanto a afirmação quanto a negação das premissas levantadas durante o filme.

(…)

 A verossimilhança com a qual Dreyer plasma a realidade da Inquisição é quase inacreditável, especialmente no tocante à fotografia, que traz para a tela a atmosfera de um quadro de Rembrandt. Numa sequência inesquecível, a câmara varre em panorâmica semicircular a sala do “interrogatório”, mostrando-nos os clérigos em crescente atenção pela tortura da velha acusada. Parece-nos que os personagens da pintura flamenga do século XVII saíram das molduras e ganharam vida na tela grande. O forte contraste entre as vestes pretas e os colarinhos brancos bordados, o uso da luz focal no rosto dos protagonistas, o escurecimento dos “espaços mortos” ou a delicada profundidade de campo mostram a proximidade da composição plástica de Dreyer com a da organização espacial e cromática (guardadas as devidas proporções para o P&B) de Rembrandt. Em cenas muito raras e todas em captações externas, a ambientação plenamente iluminada, já mais para Veemer, compõe o rectângulo da tela por breves momentos.

A “decoupage” interna de “Dies Irae”, vinda das artes plásticas, é responsável por um choque no uso de planos, movimentos de câmara e, ainda, pela (…) lentidão da narrativa.

(…)

O contexto religioso, composto pela profecia do “dia da ira de Deus” e por um pretenso racionalismo é puramente baseado na filosofia do também dinamarquês Sören Kierkegaard, à qual Dreyer voltaria em “A Palavra”. Em “Dies Irae”, não apenas a angústia do indivíduo frente à omnipotência de um divino sempre em silêncio é retratada, mas também se observa o uso da fé para exterminar o mal de um modo que em qualquer outra situação seria um crime, mas, por se tratar de uma realização cristã de purificação da alma, atinge o patamar de acção santificadora.

(…)

Essa dualidade entre o sacrifício em nome de Deus e o delito em nome dos homens parece estreitar-se em cada linha dos diálogos pronunciados sempre em voz baixa e com uma contenção simplesmente aterradora. Acima de tudo, “Dies Irae” é um filme sacro e poeticamente brutal. Todo o conteúdo da obra parece dar-se em território sagrado, tal a precisão do cenário clerical, dos corredores assombrosos da capela, da atitude rígida (…) dos personagens. A única oposição a esse todo seco é a segunda sequência do filme, na casa da primeira bruxa denunciada. Um pouco de Diego Velázquez, no seu período sevilhano, está presente aqui, com a lareira a arder, os planos divididos entre objectos e pessoas, a exposição do quotidiano até então despreocupado: um instantâneo da vida simples. Depois, entre a pompa e a limpa simplicidade monástica, o filme irá retratar, sob forte luz, a vida do pastor e da sua família.

 A wagneriana música de Poul Schierbeck ao lado da economia e a perícia no uso do som (Dreyer vem do cinema mudo, daí o seu requinte em utilizar ruídos e dar um volume calculado às vozes), finalizam muitíssimo bem o produto fílmico. Não falta nada, nem aos olhos, nem aos ouvidos. Se o ritmo propositadamente muito lento de “Dies Irae” pode cansar o espectador, a sua intensidade  dramática e o aprimorado uso técnico compensam a imobilidade temporal. (…) Deus, a punição do homem a crimes invisíveis, o questionamento da existência ou não da maldade sobrenatural e o desejo reprimido são postos em cena de uma maneira poética, que se distingue pelo rigor visual.

 “Dies Irae” é inquestionavelmente uma forte candidata a obra-prima na genial filmografia de Dreyer.

 

Texto (adaptado) de

Luz Santiago

Portal Plano Critico

 


The Pianist de Roman Polanski


 

Título em português: O Pianista

Realizador: Roman Polanski

Ano: 2002

País: França, Reino Unido, Alemanha e Polónia

Argumento: Ronald Harwood

            segundo a autobiografia de Wladyslaw Szpilman, intitulada “Das wunderbare Überleben” (e traduzida para português com o título “O Pianista” e editado pela Ed. Presença)

Fotografia: Pawel Edelman

Elenco principal: Adrien Brody, Thomas Kretschmann, Frank Finlay, Maureen Lipman, Emilia Fox

Duração: 2 horas e 23 minutos

 

(…)

 

Escrito por Ronald Harwood a partir do livro autobiográfico de Wladyslaw Szpilman, “O Pianista” tem início justamente no momento em que a Alemanha invade a Polónia e começa a decretar leis anti-semitas: no início, os judeus são proibidos de andar nas ruas da cidade (no caso, Varsóvia) e de se sentarem nos bancos das praças. Em seguida, são obrigados a usar, nos braços, faixas ostentando a Estrela de David e, mais tarde, são “depositados” no gueto de Varsóvia. É neste contexto que conhecemos a família do pianista: cultos e relativamente abastados, os Szpilman acreditam que a Alemanha logo será derrotada, já que França e Inglaterra acabam de declarar guerra a Hitler. Assim, é com grande terror que acabam por se submeter às constantes humilhações impostas pelos nazis enquanto lutam para ficarem unidos – e estas humilhações parecem não ter fim, já que os militares alemães parecem dispostos a realizar novas atrocidades a todo o momento, como na cena em que interrompem o jantar de uma família e, para evitar o incómodo de carregar um inválido pelas escadas, resolvem atirá-lo pela janela.

Aliás, eu poderia facilmente preencher toda esta análise apenas com descrições das barbaridades vistas ao longo de “O Pianista”, (…) pois o filme não poupa o espectador de ver, nas ruas do gueto, os cadáveres em decomposição de crianças vitimadas pelo frio e pela fome. No entanto, ainda mais assustador é constatar que, com o tempo, os habitantes do gueto passam a nem prestar atenção aos corpos, como se estes já fizessem parte da trágica paisagem (…)

A direcção de “O Pianista, aliás, é primorosa: ao longo dos 143 minutos de projecção, Polanski consegue realizar uma proeza dificílima em produções deste tipo, levando o espectador a sentir o lento transcorrer dos anos sem que, com isso, a narrativa torne-se episódica ou artificial. E mais: ao retratar a jornada de Szpilman, o cineasta ilustra com competência as dificuldades que este enfrenta para se manter vivo, já que comida era artigo de luxo nos tempos de guerra – assim, sempre que chega num novo esconderijo, o protagonista é obrigado a procurar algo para comer e beber, mesmo que isso implique em mergulhar o rosto num balde cheio de dejectos humanos.

Enquanto isso, Adrien Brody oferece uma performance absolutamente inesquecível como Szpilman, encarnando com incrível realidade a decadência física e psicológica do personagem ao longo dos anos: de sua sofisticação inicial até se transformar na figura animalesca vista no fim da guerra. Passivo ao extremo, o pianista não é um herói na acepção habitual da palavra, já que sua postura frente às dificuldades jamais é a de alguém disposto a lutar pelos seus ideais ou mesmo pela sua vida: durante toda a duração do filme, Szpilman é conduzido de um lado para o outro de Varsóvia por amigos e aliados, mas jamais questiona os planos que lhe são apresentados. Aliás, a impressão é a de que o sujeito se mantém vivo mais por inércia do que por persistência: ao ficar preso por duas semanas num apartamento sem comida, por exemplo, ele nem sequer tenta encontrar uma saída para o problema, limitando-se a deitar-se num sofá e agonizar até que alguém venha ajudá-lo.

Presente em praticamente todas as cenas de “O Pianista”, Brody carrega o filme com uma força impressionante (…): Wladyslaw Szpilman é um homem absolutamente comum, não possuindo `tiques` ou outras características que o transformem numa personalidade única, o que certamente dificultou ainda mais o trabalho do actor.

Mas as qualidades de “O Pianista” não param por aí: a direcção de arte (obra de Sebastian T. Krawinkel) é impressionante, recriando com cuidado o gueto de Varsóvia e também as ruínas em que a cidade se transformou ao longo da guerra – e a cena em que Szpilman vê o resultado dos bombardeamentos pela primeira vez é impactante, já que a destruição de Varsóvia acaba por servir como reflexo da própria degradação do personagem. Também merecem destaque a sombria e melancólica fotografia de Pawel Edelman e os figurinos de Anna B. Sheppard, que ajudam Polanski a compor o retrato daquela triste época.

Sem se preocupar em criar momentos melodramáticos para arrancar lágrimas do espectador, “O Pianista” é um filme triste sem que, para isso, precise de ser emocionante. A tristeza provocada por esta história não vem de momentos artificialmente criados através da utilização da banda sonora ou de discursos cuidadosamente escritos, mas sim da constatação assustadora de que os seres humanos são capazes de realizar atrocidades inimagináveis – e o fato do protagonista desta produção ser um pianista somente contribui para salientar este facto, já que estabelece um forte contraste entre a beleza criativa das Artes e a monstruosidade insana da Guerra.

Pablo Villaça

 

Blog Cinema em Casa

Texto adapatado

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

L’ Avventura de Michelangelo Antonioni

 

Título em português: A Aventura

Realizador: Michelangelo Antonioni

Ano: 1960

País: Itália

Argumento: Michelangelo Antonioni, Elio Bartolini e Tonino Guerra

Fotografia: Aldo Scavarda

Elenco principal: Monica Vitti, Gabriele Ferzetti, Lea Massari

Duração: 2 horas e 23 minutos

 

“ O ano de 1961 foi há muito tempo. Quase 50 anos atrás. Mas a sensação de assistir ao filme "A Aventura" pela primeira vez ainda está comigo, como se tivesse sido ontem.

 

Onde foi que o assisti? No Art Theater na Eighth Street? Ou foi no Beekman? Não me lembro, mas recordo-me da energia que correu pelo meu corpo na primeira vez que ouvi o tema musical de abertura - sinistro, staccato, tirado de cordas, tão simples, tão austero, como as trompas que anunciam o próximo tercio durante uma tourada. E, a seguir, o filme. Um cruzeiro no Mediterrâneo, sol brilhante, em imagens em preto e branco diferentes de tudo o que eu já havia visto - compostas com tanta precisão, acentuando e expressando (…) um tipo muito estranho de desconforto. Os personagens eram ricos, bonitos de certa forma, mas, poder-se-ia dizer, espiritualmente feios. Quem eram eles para mim? O que eu seria para eles?

 

Eles chegam a uma ilha. Separam-se, espalham-se, tomam sol, discutem. E, de repente, a mulher interpretada por Lea Massari, que parece ser a heroína, desaparece. Das vidas dos outros personagens, e do próprio filme. (…) Michelangelo Antonioni jamais explicou o que aconteceu com a Anna interpretada por Massari. Ela afogou-se? Despenhou-se de um penhasco? Escapou dos amigos e começou uma vida nova? Jamais descobrimos.

 

Em vez disso, a atenção do filme volta-se para a amiga de Anna, Claudia, interpretada por Monica Vitti, e para o seu namorado Sandro, cujo papel é interpretado por Gabriele Ferzetti. Eles começam a procurar Anna, e o filme parece transformar-se numa espécie de história de detective. Mas logo a nossa atenção é deslocada da mecânica da busca pela câmara e pela forma como esta se movimenta. Nunca se sabe onde ela estará, ou o que seguirá. Da mesma forma, as atenções dos personagens mudam de foco: para a luz, o calor, a sensação de lugar. E, a seguir, passam a concentrar-se uns nos outros.

 

Assim, o filme transforma-se numa história de amor. Mas isso também se dissolve. Antonioni torna-nos conscientes de algo muito estranho e desconfortável, algo que nunca tinha sido visto no cinema. Os seus personagens fluem pela vida, de impulso a impulso, e tudo acaba revelando-se um pretexto: a busca foi um pretexto para estarem juntos, e estar juntos foi um outro tipo de pretexto, algo que moldou as suas vidas e conferiu a estas uma espécie de sentido.

 

Quando mais vejo "A Aventura" - e voltei a assistir ao filme diversas vezes -, mais percebo que a linguagem visual de Antonioni mantinha-nos focados no ritmo do mundo: os ritmos visuais de luz e sombra, de formas arquitectónicas, de pessoas posicionadas como figuras num cenário que sempre parecia assustadoramente vasto. E havia também o tempo do filme, que parecia estar em sincronia com o ritmo temporal, movendo-se vagarosamente, inexoravelmente, permitindo aquilo que depois percebi serem as limitações emocionais dos personagens - a frustração de Sandro, a auto-depreciação de Claudia -, calmamente tomando conta deles e empurrando-os para uma outra "aventura", e depois para uma outra, e uma outra. Assim como o tema da abertura, que mantinha-se oscilando entre o clímax e a dissipação. Clímax e dissipação. Interminavelmente.

 

 

Enquanto todos os outros filmes que eu tinha assistido progrediam para um clima de tensão, "A Aventura" rumava para a calma. Os personagens não tinham nem o desejo nem a capacidade para expressar uma autoconsciência real. Eles só contavam com aquilo que parecia ser uma autoconsciência, encobrindo uma veleidade e uma letargia que eram ao mesmo tempo infantis e muito reais. E na cena final, tão desolada, tão eloquente, uma das passagens mais marcantes do cinema, Antonioni percebeu algo de extraordinário: a dor de simplesmente estar vivo. E o mistério.

 

(…)

 

As pessoas com as quais Antonioni estava lidando, bastante similares àquelas dos romances de F. Scott Fitzgerald (cuja obra, segundo descobri mais tarde, Antonioni apreciava bastante), eram as mais estranhas possíveis no que dizia respeito à minha vida. Mas no final isso pareceu não ter importância. Fiquei hipnotizado por "A Aventura" e pelos filmes subsequentes de Antonioni, e foi o fato de eles não se resolverem em qualquer sentido convencional que me fez voltar tantas vezes a assisti-los. Eles apresentavam mistérios - ou, melhor dizendo, o mistério, a respeito de quem somos, o que somos, uns para os outros, para nós mesmos, para a nossa época. Seria possível dizer que Antonioni estava fitando directamente os mistérios da alma. Foi por isso que sempre retornei à sua obra. Eu queria continuar experimentando essas imagens, vagando por elas. E ainda o faço.

 

Martin Scorsese


Tchevolek s kinoapparatom de Dziga Vertov

 

Título em português: O Homem da Câmara de Filmar

Realizador: Dziga Vertov

Ano: 1929

País: Rússia

Documentário

Fotografia: Mikhail Kaufman

Duração: 1 hora e 8 minutos

 

Teorizar sobre o género documentário não é algo tão simples quanto pode parecer à primeira vista. Em rigor, temos na memória a imagem de que o documentário é um registo da verdade, uma fonte de informações críticas sobre alguém ou alguma coisa. Nele, temos uma versão impessoal e distanciada dos factos, o que nos permite construir, livres de indícios alheios, a nossa própria visão e opinião a respeito do que vimos, certo? Errado.

De todos os géneros, o documentário é certamente o mais perigoso, porque carrega a bandeira da “verdade” consigo. (…). Esse perigo de “filme revelador” ainda ilude muito espectador ingénuo ou que desconhece certos princípios básicos do cinema, como a produção e a montagem, duas coisas que influenciam sobremaneira em qualquer obra cinematográfica.

 

Mesmo que a concepção de um documentário não passasse pelo crivo particular do director e da equipe técnica – afirmação questionável, já que as escolhas dos entrevistados, dos arquivos a serem utilizados e dos locais de filmagem simbolizam um filtro de informações, portanto, é uma escolha, e como tal, algo particular -, a montagem por si só corromperia a ideia de verdade pura, porque construiria uma versão do facto, com direito a simbolismos, metáforas, efeitos dramáticos, ou simplesmente, a escolha do que entraria ou não para o corte final.

  

Partindo desse princípio de que um documentário é uma construção/versão da verdade (podendo haver muitas outras), entenderemos melhor o exercício de Dziga Vertov em “O Homem da Câmara de Filmar. O director russo, teórico do cinema-verdade (kino-pravda), do cinema-olho (kino-glaz), ou do construtivismo cinematográfico, versões de uma sétima arte longe das atracções ficcionais, propôs, através de sua obra inicial, uma visão da realidade quotidiana feita sem interpretação de papéis e fora do palco simbólico, como fazia Sergei Eisenstein, segundo palavras do próprio director.

 

O que geralmente se deixa passar é que, mesmo Vertov não fazendo mudanças estruturais na realidade que filmava, fazia mudanças no modo como o público deveria perceber essa realidade. Mas isso é algo mau? Não! Isso é notável, porque nos ajuda a entender que mesmo a mais bem intencionada proposta de imagem-movimento-verdade é manipulada para dar um sentido específico ao público, obedecendo aos princípios teóricos do realizador da obra.

Nesse exercício de verdade construída na montagem e convite à percepção crítica, Vertov faz um ciclo quase vicioso de imagens, compondo, desconstruindo e recompondo imagens no decorrer do filme. Elementos que vimos nos minutos iniciais voltam aos poucos a aparecer, especialmente ao final, complementando e adicionando mais ingredientes à nossa ideia do que o autor tentava mostrar.

(…)

“O Homem da Câmara de Filmar” é um filme pioneiro. Assim como todo documentário teórico, é uma obra para pensar a concepção da verdade e o seu entendimento através de uma produção imagética analítica, além de discutir teorias sobre manipulação do real e reinterpretar as formas conhecidas de entender o mundo através do cinema (…).

Luiz Santiago

Portal Plano Crítico

 


Rocco e i suoi fratelli de Luchino Visconti

 


Título em português: Rocco e Seus Irmãos

Realizador: Luchino Visconti

Ano: 1960

País: Itália

Argumento: Suso Cecchi D’Amico, Pasquale Festa Campanile, Massimo Franciosa e Enrico Medioli

com base num tema, elaborado por Suso Cecchi D’Amico, Vasco Pratolini e Luchino Visconti, inspirado no livro de contos de Giovanni Testori com o título “Il ponte della Ghisolfa”  

Fotografia: Giuseppe Rotunno

Elenco principal: Alain Delon, Renato Salvatori, Katina Paxinou, Annie Girardot, Claudia Cardinale

Duração: 2 horas e 50 minutos

 

Lançado em 1960, o filme “Rocco e seus Irmãos (Rocco e i suoi Fratelli) conta a história – meio épica, meio fábula – de uma família de retirantes do sul da Itália em busca de vida nova na moderna e industrial Milão. 

Diante do embate entre modernidade e tradicionalismo, Visconti mostra a decadência de uma família que abandona a dura e faminta vida de uma sociedade virtuosa, o campo, para tentar a sorte nas ilusões de uma sociedade corrompida, a cidade grande. As cenas iniciais da família chegando à cidade, deslumbrada, cheia de perspectivas e sonhos e ainda unida pela força dos laços de amor e sangue, demonstram tanta ingenuidade que a trama nos leva à uma pitada da angústia que irá perpassar todo o filme. Era bom demais para ser verdade…

Trazendo à tona a cena moderna, Visconti constrói a narrativa de “Rocco e seus Irmãos” mostrando, através da história dos Parondi, a degradação dos valores, o dilaceramento da vida comum, a decadência da sociedade contemporânea. Decadência esta que, numa só palavra e visão simplista, definiria não só o filme em questão como boa parte da obra do director. A decadência de uma família como a de muitas outras. A história de Rocco e seus irmãos como referência universal.

 

Rocco e seus Irmãos” não só é uma obra-prima do cinema como também uma crítica do mundo moderno através das lentes de um cuidadoso director. Visconti, a partir de sua visão de mundo e seu comprometimento político e filosófico, lança mão da tragédia e da decadência de uma família para apresentar a sua visão, decadente e trágica, da sociedade moderna. A essência da tragédia do filme é justamente o choque entre a angústia humana, incorporada em Rocco e os seus, e a fatalidade externa, assombrada pela modernidade capitalista.

 

O director passeia pela cena moderna, mostrando suas contradições e provações, deixando o cenário, subtilmente, interferir no quotidiano das pessoas. A cidade não pára um minuto. Mesmo que o drama seja na vida de um ou outro, no turbilhão da modernidade, este é apenas mais um drama, como o de milhares de pessoas. A vida parece acabar para determinado personagem, mas o pano de fundo não deixa de lembrar que “a vida continua”, independente do que possa acontecer na sua pobre e mortal vida. 

 

Isso tudo sem perder de vista uma refinada e poética proposta estética, na qual o conteúdo, a mensagem, pode deslizar de uma cena para outra sem perder a força ou sobrecarregar o ritmo do filme. Com fotografia apurada e sequências deslumbrantes, Visconti consegue produzir uma obra de arte engajada, unindo forma e conteúdo e mantendo, ao mesmo tempo, o seu compromisso ideológico, político, estético e filosófico.

(…)

Visconti era sui generis no cinema italiano nos idos do “naturalismo” e “neo-realismo”, deixando estes e outros “ismos” de lado para criar algo com sufixo mais pessoal: “viscontiano”. Visconti “amava Verdi e o “melodrama”, como declarou certa vez à maneira de epitáfio; paixão que ao lado de seus princípios socialistas entranhou em toda a sua obra, no cinema e no teatro. Filho de família nobre e aristocrata, o “conde vermelho” nada tinha a ver com o sofrimento da família Parondi, a não ser o melodramático e operístico carácter de seu pensamento acerca do mundo moderno e suas contradições. 

 

Assistindo  a “Rocco e seus Irmãos percebe-se que o director teve certamente liberdade de criação (e recursos para isso) e pôde, como diria Godard, usar o cinema como un outil de pensée, “um instrumento de pensamento”. Além de expor o seu pensamento em relação ao mundo, o director buscou despertar na plateia sentimentos que a levasse a pensar. Assim, não é de se estranhar que o público não só criasse uma identificação com a família Parondi, como também que se sentisse tocado, às vezes aliviado, às vezes indignado, com o triste e trágico destino de Rocco e seus irmãos.

Blog Isso Compensa

 


Tabu de F. W. Murnau

Título em Portugal: Tabu Realizador: F. W. Murnau Ano: 1931 País: Estados Unidos Argumentista: F. W. Murnau e Robert J. Flaherty Fotografia...