Título em
Portugal: Esplendor Na Relva
Realizador: Elia Kazan
Ano: 1961
País: Estados Unidos
Argumentista: William Inge
Fotografia:
Boris Kaufman
Elenco
principal: Natalie Wood, Warren Beatty, Pat Hingle, Barbara Loden, Audrey
Christie
Duração: 2
horas e 4 minutos
“Eu sei que
Deannie Loomis não existe/ mas entre as mais essa mulher caminha/ e a sua
evolução segue uma linha/ que à imaginação pura resiste.”
Começa assim
o soneto intitulado “Esplendor na Relva”, que Ruy Belo inseriu em “Homem de
Palavra[s]”. Deannie Loomis (aliás Wilma Deannie Loomis) é o nome da
protagonista interpretada pela fabulosa Natalie Wood. O pretexto (em sentido
literal) é o filme de Elia Kazan “Splendor in the Grass” (1961), com argumento
de William Inge.
Hoje, o
filme ganhou ressonâncias míticas, associado aos idos de 60 e aos Maios de tal
década. Na altura, não as teve e foi mesmo, da América a Portugal,
implacavelmente zurzido pela crítica que o achou piegas e cabotino. O público
também não ligou peva. Mas para alguns – poucos, e certamente não felizes – foi
paixão tão devastadora como a que, no filme, os adolescentes Deannie Loomis e
Bud Stamper (Warren Beatty) tiveram um pelo outro. Ruy Belo foi desses. Aliás,
não certamente por acaso, foi ele o único poeta que conheço a cantar as duas
mulheres mais intensas dos “late fifties” e dos “early sixties”: Marilyn Monroe
(esse assombroso poema chamado “Na Morte de Marilyn”, que vem no “Transporte do
Tempo” e em que nos pede para “em vez de Marilyn dizer mulher”) – e Natalie
Wood.
Eu sei que
Ruy Belo não cantou Natalie Wood mas Deannie Loomis. Mas também sei que Natalie
Wood “não existe/mas entre as mais”, etc. E há nesse verso um prodígio de
adequação poética.
É quando se
diz que “a sua evolução segue uma linha/ que à imaginação pura resiste”.
Resiste à “imaginação pura” (no sentido de “pura imaginação”) ou resiste,
“pura”, à imaginação? Ou seja, o adjectivo “pura” refere-se à imaginação ou a
Deannie Loomis? Ou – pode ser também – à “linha que resiste”? Nestas três perguntas
está o cerne de Deannie Loomis, de Natalie Wood e de “Splendor in the Grass”.
São mulheres e filme da nossa imaginação? São mulheres e filme que resistem à
nossa imaginação? Ou são mulheres e filme que resistem a uma linha evolutiva que
só na nossa imaginação existe? Não sei, como provavelmente Ruy Belo não
saberia, mas, como também ele escreveu (na “explicação preliminar” à 2ª edição
do livro): “Ninguém no futuro nos perdoará não termos sabido ver esse verbo que
tão importante era para os gregos.” E, em “Splendor in the Grass”, tudo está no
ver, que traz a história dos meninos e moços do Kansas – meninos e moços dos
anos 20, de antes da Depressão – à dimensão das mais belas histórias de amor e
de morte jamais contadas.
Sirvo-me do
exemplo mais conhecido, também poético, e que dá o título ao filme. No liceu de
Natalie Wood, onde ela entrava sempre com três livros apertados ao peito, um
deles de capa azul, a aula de literatura, nesse dia, não era sobre “Os
Cavaleiros da Távola Redonda” mas sobre Wordsworth e a “Ode of Intimation to
Immortality”. Deannie/Natalie chegava de
vestido “grenat” muito escuro, gola de rendas. Todas as colegas sabiam – e ela
também, embora ninguém lho tivesse dito – que Bud/Warren, incapaz de separar
mais tempo o desejo e o amor, tinha enganado, na véspera à noite, a fome do
corpo dela, no corpo de Juanita, única da turma que não se ficava pelos beijos.
Nada seria mais, para eles, como antes fora. Como também se diz no filme
(noutro contexto), Deannie trazia, debaixo do vestido, o primeiro golpe na sua
própria carne.
E é quando
todo o mundo vacila à roda dela que a professora a interpela para lhe perguntar
o que é que o poeta quis dizer com os versos famosos: “No, nothing can bring
back the hour/ the splendor in the grass, the glory in the flower. “ Para a
estúpida e pedagógica pergunta não há resposta, ou a esse nível só há a que
Natalie Wood comoventemente tenta articular. Mas não é nada disso que o poeta
quis dizer.
O que conta,
o que o poeta quis dizer, é o que Natalie só naquela altura sente e sabe, ou
pressente e entrevê. Por isso, o que conta e o que o poeta quis dizer é o
espantoso “travelling” que arranca Deannie do lugar e a põe diante da
professora atónita, depois aquele outro em que sai a correr da aula e nos atira
com a porta na cara e, por fim, esse plano em que a vemos, sozinha, na
profundidade de campo do corredor do liceu, até ir parar à enfermaria. Nesse
minuto de cinema, sabemos, para além das palavras, que “that radiance that was
once so bright/ Is now forever taken from my sight.” Irradiância que, no filme,
foi “entre” o plano inicial (Deannie e Bud a namorar nas cataratas, e ela com
tanto medo de não aguentar mais) e essa sequência, também nas cataratas, em que
Bud fez com Juanita o que não fez com ela e de que essas cataratas são a mais
poderosa das metáforas.
O “esplendor
da relva” é o que vimos até à aula: são os planos em que se deita de bruços na
cama (Warren Beatty deita-se da mesma maneira); é o búzio encostado ao ouvido;
são os ursos de pelúcia coexistindo com o retrato dele; é o dia em que entrou
no liceu ao lado dele, tão orgulhosa, de blusa amarela e saia branca; é o plano
da ducha dos rapazes; é a noite de chuva no carro amarelo e Deannie dizer a Bud
que ficará para sempre à espera dele; é uma saia cor-de-rosa que funde em
negro; é, sobretudo, a estarrecedora sequência em que Bud a obriga a
ajoelhar-se-lhe aos pés e ela desata a chorar. Aflitíssimo, Bud diz-lhe que era
uma brincadeira. E ela a responder: “Não posso brincar com estas coisas. Eu era
capaz de fazer tudo o que tu me pedisses. Tudo. Juro que era.”
Mas é depois
da sequência da aula que o filme atinge o máximo de beleza e tensão, desde o
longo período em que Deannie se isola até à crise que a leva ao manicómio.
Natalie Wood começa por cortar os cabelos ao espelho (iniciaticamente) e,
depois, veste-se de encarnadíssimo (“bandelette” encarnada, colar encarnado)
para se oferecer a Bud na sequência da festa, para ser recusada por Bud e,
depois, correr pelos “rails” até às cataratas (terceira e última presença delas
no filme) e mergulhar nas águas, onde até a morte lhe frustram.
Mas nem Wordsworth
nem Kazan terminam no desespero ou “nesse desespero”. Após os versos que dão
título ao filme, Wordsworth diz: “We will grieve not, rather find/ strength in
what remains behind.”
Não estou
nada certo que seja “força” o que Natalie Wood encontrou na relva da clínica,
entre velhas catalépticas e enfermeiras de olhar estranho. Não estou nada certo
que seja “força” o que Warren Beatty encontrou na universidade para onde o
mandaram, ou na noite de Nova York em que o pai lhe pagou uma “rapariga
parecida com Deannie”. Mas “o que ficou para trás” , “isso”, introduz-se a cada
plano do lento desmoronar deles, das famílias deles, da América da crise de 29,
de um mundo com tais valores.
Elia Kazan
disse preferir no filme a sequência em que Deannie regressa à casa paterna, ao
que dizem “curada”, e conversa com a mãe que lhe diz que tudo o que fez foi
para bem dela. Já está noiva do “rapaz de Cincinatti”, que conheceu no hospital
e Bud já está casado com Angelina, que não tinha entrado na história e até já
tem um bebé. Deannie vai visitá-los, com as amigas. Não há uma palavra sobre o
passado e há só o passado. Depois do “esplendor na relva”, Bud fica com as
capoeiras e ela com um companheiro das trevas. “Como numa tragédia grega:
sabemos o que vai acontecer e só podemos ver o que acontece.”
Estas
palavras são de Kazan. Mas esta “tragédia americana” não acaba em mortes
violentas. Só na morte que cada um de nós traz dentro de nós, feita de tudo
“what remains behind”. “We will grieve not” e, por isso mesmo, a nossa dor é
muito maior. De Deannie Loomis e Bud Stamper me despeço com outro poema de Ruy
Belo: “Mas agora que cantei da tristeza/não observo já os mais leves traços/ e
a minha maneira de me matar/ é deixar cair ambos os braços.” É a isto que se
chama “intimação à imortalidade”?
João Bénard
da Costa
“Folha da
Cinemateca”