quinta-feira, 28 de março de 2024

Un chien andalou de Luis Buñuel

 


Título em Portugal: Um Cão Andaluz

Realizador: Luis Buñuel

Ano: 1929

País: França

Argumentista: Luis Buñuel e Salvador Dali

Fotografia: Albert Duverger

Elenco principal: Pierre Batcheff, Simone Mareuil

Duração:  21 minutos

 

Luis Bunuel afirmou que se lhe dissessem que tinha vinte anos de vida e lhe perguntassem como queria vivê-los, a sua resposta seria: "Dêem-me duas horas por dia de actividade e eu levarei as outras 22 a sonhar -- desde que eu me lembre dos sonhos." Os sonhos foram o alimento dos seus filmes e, desde os seus primeiros dias como surrealista em Paris até aos seus triunfos no final dos anos setenta, a lógica dos sonhos sempre foi susceptível de interromper o realismo dos seus filmes. Essa liberdade conferiu-lhes uma qualidade tão distinta que, tal como os de Alfred Hitchcock ou de Federico Fellini, podiam ser identificados quase imediatamente.

O seu primeiro filme, escrito em colaboração com o conhecido artista surrealista Salvador Dali, foi “Un Chien Andalou” (1929). Nem o título, nem qualquer outra coisa no filme pretendiam fazer sentido. E continua a ser o curta-metragem mais famoso já realizado, e qualquer pessoa meio interessada em cinema o vê mais cedo ou mais tarde, geralmente várias vezes.

Foi feito na esperança de administrar um choque revolucionário na sociedade. “Pela primeira vez na história do cinema”, escreveu o crítico Ado Kyrou, “um director tenta não agradar, mas sim alienar quase todos os potenciais espectadores”. Isto foi na altura, e ainda é agora. Hoje, as suas técnicas foram tão completamente absorvidas até mesmo pela corrente dominante que o seu valor de choque está diluído - excepto na famosa cena do corte do globo ocular, ou talvez na cena do homem a arrastar o piano de cauda com os padres e o burros mortos em cima dele. . . .

É útil lembrar que "Un Chien Andalou" não foi feito pelos Buñuel e Dali que vemos já velhos acabados em muitas fotografias, mas por jovens teimosos na casa dos vinte anos, intoxicados pela liberdade de Paris durante a década da Geração Perdida. Há uma ligação subterrânea entre os surrealistas e os Sex Pistols, entre Buñuel e David Lynch, entre Dali e Damien Hirst (o artista que exibiu meio cordeiro num cubo de plástico). "Embora os surrealistas não se considerassem terroristas", escreveu Buñuel na sua autobiografia, "eles lutavam constantemente contra uma sociedade que desprezavam. A sua principal arma não eram as armas, é claro; era o escândalo."

O escândalo de "Un Chien Andalou" tornou-se uma das lendas dos surrealistas. Na primeira exibição, afirmou Buñuel, ele ficou atrás da tela com os bolsos cheios de pedras, “para atirar ao público em caso de fiasco”. Os outros não se lembram das pedras, mas as memórias de Buñuel às vezes são uma intensa reescrita da vida. Quando ele e os seus amigos assistiram pela primeira vez ao revolucionário filme soviético de Sergei  soviético de  soviético "O Encouraçado Potemkin", de Sergei soviético, de Sergei Eisenstein, “O Couraçado Potemkine”, ele afirmou que, quando deixaram o cinema, imediatamente começaram  a arrancar as pedras da rua para

 “Un Chien Andalou” foi um dos primeiros filmes feitos artesanalmente – filmes realizados pelos seus criadores com um estreito orçamento, sem financiamento de estúdio. É um antepassado das obras de John Cassavetes e dos filmes digitais independentes de hoje. Buñuel (1900-1983), um espanhol atraído por Paris e por sonhos vagos de se tornar um artista, encontrou emprego na indústria cinematográfica, aprendeu um ofício, donde foi demitido por insultar o grande director Abel Gance e caiu na órbita dos surrealistas.

Ele foi passar alguns dias a casa de Dali, um companheiro espanhol, e contou-lhe um sonho que tivera, em que uma nuvem cortava a lua ao meio, "como uma lâmina de barbear a cortar um olho". Dali respondeu-lhe com um sonho seu sobre uma mão cheia de formigas. “E se começássemos assim e fizéssemos um filme?” perguntou Buñuel, e eles concordaram. Eles escreveram o guião juntos e Buñuel dirigiu, levando apenas alguns dias e pedindo emprestado o dinheiro para o orçamento à sua mãe.

Ao colaborarem na concepção do cenário, o método deles consistiu em lançar imagens ou acontecimentos chocantes uns contra os outros. Antes, ambos concordaram num princípio para a realização do filme. “Nenhuma ideia ou imagem que pudesse prestar-se a uma explicação racional de qualquer tipo seria incluida”, lembrou Buñuel. “Tivemos que abrir todas as portas ao irracional e manter apenas as imagens que nos surpreendessem, sem tentar explicar o porquê.”

À imagem da lua seguiu-se a imagem de um homem com uma navalha (Buñuel) cortando o olho de uma mulher (na verdade, o olho de um bezerro - embora a lenda o tenha transformado no de um porco). A mão cheia de formigas foi seguida por um travesti de bicicleta, uma axila peluda, uma mão decepada na calçada, um pedaço de pau batendo na mão, uma agressão sexual em estilo de filme mudo, uma mulher a  proteger-se com uma raquete de ténis, o possível abusador puxando o piano com a sua carga bizarra, duas estátuas aparentemente vivas na areia de torso para cima, e assim por diante. Descrever o filme é simplesmente listar as suas cenas, já que não há um enredo que as ligue.

Mesmo assim, nós tentamos ligá-las. Inúmeros analistas aplicaram fórmulas freudianas, marxistas e junguianas ao filme. Buñuel riu de todos. Por isso, olhar para o filme é aprender o quanto fomos ensinados por outros filmes a encontrar significado mesmo quando ele não existe.

Buñuel disse a uma actriz para olhar pela janela "qualquer coisa - um desfile militar, talvez". Na verdade, a próxima cena mostra o travesti a cair morto da bicicleta. Naturalmente, presumimos que a actriz está a olhar para o corpo na calçada. É estranho a tudo o que sabemos sobre os filmes concluir que a cena da janela e a cena da calçada simplesmente acontecem uma após a outra, sem qualquer conexão. Da mesma forma, assumimos que o homem puxa os pianos (com os padres, burros mortos, etc.) pela sala porque o seu avanço sexual foi rejeitado pela mulher com a raquete de ténis. Mas Buñuel pode argumentar que os acontecimentos não têm qualquer ligação - o avanço do homem é rejeitado e depois, numa acção absolutamente não relacionada, ele agarra nas cordas e começa a puxar os pianos.

Ao olhar para “Un Chien Andalou”, é vantajoso olharmos com igual atenção para nós mesmos enquanto assistimos ao filme. Assumimos que é a “história” das pessoas no filme – estes homens, estas mulheres, estes acontecimentos. Mas e se as pessoas não forem protagonistas, mas apenas modelos – simplesmente actores contratados para representar pessoas que realizam determinadas acções? Sabemos que o carro no salão do automóvel não pertence (e não foi projectado ou construído por) à modelo de fato de banho que o aponta. Buñuel pode argumentar que os seus atores têm uma relação semelhante com os acontecimentos que os cercam.

Luis Bunuel (1900-1983) realizou outro filme surrealista, "L'Age d'Or" (1930), que foi acusado de sacrilégio e suprimido durante muitos anos. Ele já tinha sido trabalhador da MGM, supervisionando as versões para espanhol de filmes de Hollywood. Fez diversos filmes no México, alguns deles muito valorizados, como "Os Esquecidos" e "Ensayo de un crimen”. Aos 61 anos teve sucesso mundial com "Viridiana", com a cena chocante inspirada na Última Ceia, e durante os dezasete anos seguintes, um período de inspirada produtividade, produziu filmes surpreendentes uns a seguir aos outros, como "O Anjo Exterminador", "Diário de uma Criada de Quarto", "Belle de Jour, " "Esse Obscuro Objecto de Desejo", "O Charme Discreto da Burguesia", "Tristana" e "O Fantasma da Liberdade".

Roger Ebert

(Texto adapatado)


terça-feira, 26 de março de 2024

La meglio gioventù de Marco Tulio Giordana

 

Título em português: A Melhor Juventude

Realizador: Marco Tulio Giordana

Ano: 2003

País: Itália

Argumentista: Sandro Petraglia e Stefano Rulli

Fotografia: Roberto Forza

Elenco principal: Luigi Lo Cascio, Alessio Boni, Jasmine Trinca, Adriana Asti, Sonia Bergamasco

Duração: 6 horas e 6 minutos

 

“'A Melhor Juventude' de Marco Tullio Giordana é tão ambicioso e desproporcional que poderia ter-se arruinado (…) O risco, perceptível na primeira parte, era o efeito Bignami, a recapitulação guiada pela retrospectiva, a criação de figuras simbólicas que, em vez de fazerem história, recriando-a directamente, por assim dizer, foram influenciadas por ela. Personagens funcionais, em suma, reféns da necessidade de encontrar uma síntese e atravessar todos os gargalos, escalar todos os picos, enfrentar todos a crise dos últimos quarenta anos. Para contornar estes riscos, Giordana e os guionistas Sandro Petraglia e Stefano Rulli focaram-se inteligentemente em duas opções básicas: a primeira, não dar explicações, não procurar causas e razões, rejeitar a abstracção para ficar perto dos rostos, dos corpos, dos sentimentos, porque é disso que são feitas as histórias com que se escreve a História. Não pergunta muitos porquês, mas especifica sempre os comos. Segundo, estruturar toda a história, com todas as suas ramificações, como uma família de histórias. . (...) Na América teriam feito um musical com material parecido. Na Itália, terra natal de Verdi, só poderia ser um melodrama. Um grande melodrama que nos permite chegar a um acordo connosco próprios (com o nosso passado). E fazer a paz." (Fabio Ferzetti, 'Il Messaggero', 20 de junho de 2003)

"O que os guionistas Rodolfo Sonego fizeram pelo nosso cinema com 'Una vita difficile' (1961), de Dino Risi, e Age & Scarpelli com 'Tão Amigos Que Nós Éramos' (1974), de Ettore Scola, Stefano Rulli e Sandro Petraglia fizeram pela primeira vez na nossa melhor televisão com 'La vita che verrà' (1999, direção de Pasquale Pozzessere), continuando, hoje, cronologicamente a partir de onde aquela história parou. Ou seja, conceber e escrever um romance popular sobre a vida colectiva de uma geração italiana. Aquela, em 'A Melhor Juventude', de quem tinha vinte anos em 1968. Com o toque decisivo de um director ecléctico e sensível, inteligente e apaixonado. (...). (Paolo D'Agostini, 'la Repubblica', 21 de junho de 2003)

"Diria que, ao reconstituir os últimos quarenta anos da história da república italiana, a cavalgada de Marco Tullio Giordana, escrita por Stefano Rulli e Sandro Petraglia, não tem a ambição de erguer monumentos, mas silenciosamente sugerir alguns possíveis modelos de comportamento. Do lado público com a afirmação da solidariedade, o respeito pelos doentes mentais, a necessidade de ordem e ao mesmo tempo de novidade, a luta contra a máfia, a vontade de viajar e aprender. No privado, a trama costurada entre revelações e reviravoltas que atestam a astúcia viva e espectacular dos autores (assuma-se isto como um elogio) não evita confrontos com os problemas maiores, colocando os personagens frente a frente com a dor, a loucura, a gestão de escolhas erradas. A duração do filme serve para nos lembrar que a vida é longa; e dá-nos tempo para reflectir, nos corrigir, reinventar relacionamentos, mudar radicalmente. Tudo isso não viria à tona se 'A Melhor Juventude'  se confinasse a um teorema, mas felizmente o conteúdo está imaginativamente embrulhado nas dobras de uma narrativa livre para se seguir para onde se quiser". (Tullio Kezich, 'Corriere della Sera', 28 de junho de 2003)


Blog Cinematografo


segunda-feira, 25 de março de 2024

He Who Gets Slapped de Victor Sjöström


 

Título literal em português: Ele Que Leva Bofetadas

Realizador: Victor Sjöström

Ano: 1924

País: Estados Unidos

Argumentista: Victor Sjöström e Carey Wilson

            segundo a peça homónima de Leonid Andreiev (1871-1919)

Fotografia: Milton Moore

Elenco principal: Lon Chaney, Norma Shearer, Marc McDermott, Tully Marshall, John Gilbert

Duração: 1 hora e 13 minutos

Procurando uma mudança de ritmo na sua já bem-sucedida carreira como director e actor sueco, Victor Sjöström chegou a New York, em Janeiro de 1923, a convite da Goldwyn Pictures. A intenção de Sjöström era estudar os métodos de produção americanos e envolver-se num ou dois filmes. O sueco nunca pensou em ficar muito tempo na América.

Na primavera de 1924, porém, quando actores, directores e produtores notáveis se reuniram para celebrar a fusão da Goldwyn com as empresas Metro e Mayer, Sjöström encontrava-se no meio da situação. Até então, ele tinha anglicizado o seu nome para Seastrom e dirigido “Name the Man” (1924), um filme popular e aclamado pela crítica para a Goldwyn. Admirado pelo recém-nomeado chefe de produção da MGM, Irving Thalberg, Seastrom foi escolhido para dirigir o primeiro filme da nova empresa - uma produção de prestígio na qual dependia a sorte do estúdio. Esse filme foi “Ele Que Leva Bofetdas”.

A célebre peça de Leonid Andreyev, base do guião, foi a última obra dramática do célebre autor russo cujas histórias se tornaram cada vez mais pessimistas. Publicada pela primeira vez em 1914, a peça estreou nos Estados Unidos em 1922, no Garrick Theatre de Nova York, onde esteve em exibição seis meses e foi amplamente criticada. Alexander Woollcott, membro fundador da Mesa Redonda Algonquin escreveu: “Contém coisas que pertencem ao teatro de todo o mundo”.

Como qualquer outro aclamado director europeu trabalhando na América, Seastrom (como Murnau e Lubitsch) gozava de privilégios contratuais normalmente não concedidos a directores de estúdio, incluindo a aprovação do guião, escolha de elenco, selecção de cinegrafista e assistente de direcção, e o direito de supervisionar a edição. Atento a cada faceta de um filme, Seastrom considerou cuidadosamente as histórias que lhe foram entregues. A obra simbólica de Andreyev, com os seus temas existenciais, atraiu sem dúvida o director emigrado.

Ele Que Leva Bofetadas é a história de um cientista cuja felicidade é destruída por um amigo que rouba não apenas a sua esposa, mas também os resultados da pesquisa de toda a sua vida. O cientista fica amargurado e, em desespero, ingressa num circo como palhaço cuja actuação popular assenta em levar repetidas bofetadas. O palhaço, agora conhecido apenas como “Ele” (até sua identidade lhe foi tirada), leva uma bofetada sempre que tenta falar e, a cada bofetada, revive a sua humilhação pessoal e profissional. O palhaço encontra a sua redenção, eventualmente, quando se apaixona por uma outra artista de circo, uma jovem amazona sem sela chamada Consuelo.

Lon Chaney, um grande sucesso como personagem patético numa produção anterior de Thalberg, “O Corcunda de Notre Dame” (1923), ficou com o papel principal como palhaço masoquista e desiludido. Tal como aconteceu com o corcunda, foi um papel escolhido numa história famosa. A canadiana Norma Shearer, então uma actriz emergente, interpretou a cavaleira sem sela. O papel ajudou a torná-la uma estrela. John Gilbert, também à beira do estrelato, a princípio recusou o seu papel, achando-o muito pequeno. Numa entrevista recente, Leatrice Gilbert Fountain, filha e biógrafa do actor, disse: “Ouvi falar de várias pessoas sobre a relutância de Jack em interpretar o papel. Acredito que o primeiro foi seu amigo Carey Wilson, que adaptou a história para o filme. Ele afirmou que Irving Thalberg lhe disse: ‘Jack, esse papel fará mais pela sua carreira do que qualquer coisa que tenha feito até agora’. O papel de Jack foi pequeno, mas ele brilhou com muita intensidade e isso realmente impulsionou sua carreira.”

O elenco de apoio também é notável. Ford Sterling, um dos Keystone Cops originais, interpreta Tricaud, um colega palhaço, enquanto os atores veteranos Tully Marshall e Marc McDermott dão caracterizações memoráveis ​​nos desagradáveis e intrigantes conde e barão, respectivamente. Diz-se frequentemente que Bela Lugosi, então um emigrado recente da Hungria, teve um papel não creditado como outro palhaço, mas não surgiu nenhuma evidência para apoiar ou refutar a afirmação.

​ Thalberg supervisionou a produção, mas pouco interferiu no trabalho de Seastrom. O director disse certa vez numa entrevista: “Foi como fazer um filme na Suécia. Escrevi o roteiro sem qualquer interferência, e as filmagens foram rápidas e sem complicações.”

“He Who Gets Slapped” esteve em produção entre 17 de Junho e 28 de Julho de 1924. Tinha sete rolos e, de acordo com seu registro de direitos autorais, apresentava sequências em tons de âmbar. “He Who Gets Slapped” foi a primeira produção da recém-formada MGM, mas não o seu primeiro lançamento. O lançamento foi adiado para beneficiar de um feriado, e teve estreia a 3 de Novembro de 1924, no Capitol Theatre, na cidade de New York. A MGM promoveu o seu primeiro lançamento com intensidade, embora de forma um tanto imprecisa, com uma campanha que classificava o filme como uma “grande produção da vida circense”. O filme estabeleceu um recorde mundial num dia com US$ 15.000 em vendas de bilhetes, um recorde de uma semana com US$ 71.900 e um recorde de duas semanas com US$ 121.574.

Na sua crítica, o “New York Times” descreveu o filme como “… um filme que desafia alguém a escrever sobre ele sem ceder a superlativos… tão bem contado, tão perfeitamente dirigido que imaginamos que será considerado um modelo por todos os produtores. ” Uma revista de fãs, “Movie Weekly”, foi ainda mais longe: “Ocasionalmente surge um filme excepcional que não faz nenhuma tentativa de agradar às bilheterias. “Ele Que Leva Bofetadas” é um desses filmes, uma obra-prima artística.”

O sucesso do filme em New York repetiu-se por todo o país. Quando estreou em San Francisco, os críticos ficaram igualmente entusiasmados. O “San Francisco Call and Post” encabeçou a sua crítica chamando o filme de “realmente excelente filme fotográfico”, enquanto o crítico do “San Francisco Examiner” escreveu: “[o filme] deve ser classificado entre os melhores filmes verdadeiramente dramáticos”. Foi escolhido como um dos dez melhores filmes do ano pelo “Boston Post”, “New York News”, “New York Times” e “Los Angeles Times”, bem como pela revista “Photoplay”, “Cine Mundial”, “Movie Monthly” e “Motion Picture”.​

Os sete anos de Seastrom nos Estados Unidos foram produtivos e resultaram em outras oito obras conceituadas, incluindo “The Scarlet Letter” (1926) e “The Wind” (1928), ambos com Lillian Gish, bem como o agora perdido filme de Greta Garbo, “The Divine Woman” (1928).

Com o advento do som, porém, a carreira de Seastrom começou a vacilar. O director, sentindo-se fora de sintonia com a indústria em rápida mudança, decidiu voltar para casa. Dirigiu apenas mais alguns filmes e, durante os 15 anos seguintes, continuou a actuar tanto no cinema quanto nos palcos suecos. Aos 78 anos, Seastrom – mais uma vez Sjöström – fez sua última e provavelmente mais lembrada actuação como o professor idoso em “Morangos Silvestres” (1957), de Ingmar Bergman.

Hoje, alguns filmes mudos são lembrados pela sua importância histórica, alguns pelo seu valor artístico e outros ainda porque um determinado actor ou director desempenhou um importante papel na sua criação. “Ele Que Leva Bofetadas”, obra singular e até profunda, possui cada uma dessas virtudes cinematográficas. É um dos grandes filmes da época do mudo.

​ Texto adaptado de Thomas Gladysz

Hadaka no Shima de Kaneto Shindô

 


Título em Portugal: A Ilha Nua

Realizador: Kaneto Shindô

Ano: 1960

País: Japão

Argumentista: Kaneto Shindô

Fotografia: Kiyomi Kuroda

Elenco principal: Taiji Tonoyama, Nobuko Otowa, Shinji Tanaka, Masanori Horimoto

Duração: 1 hora e 36 minutos

 

Kaneto Shindo morreu em maio de 2012, aos 100 anos. Natural de Hiroshima, pouco parece tê-lo afectado mais no seu século neste planeta do que as bombas atómicas lançadas sobre a sua cidade natal e sobre Nagasaki ao encerrar da Segunda Guerra Mundial - não apenas os próprios eventos (nos quais ele não estava presente), mas os seus efeitos persistentes, tanto físicos como espirituais. Embora ambientados nos séculos XI e XIV, respectivamente, os seus filmes de terror, “Shindo”, “Onibaba” e “Kuroneko”, são comummente entendidos como alegorias do Japão pós-Segunda Guerra Mundial. Os espíritos sinistros das mulheres assassinadas vingam-se daqueles que lhes fizeram mal e usam máscaras para esconder os rostos deformados. Não existe tal deformidade ou mesmo violência em “A Ilha Nua”, nem existe muito mais nada. O filme, embora não seja exactamente mudo, tem menos de cinco linhas de diálogo. A acção consiste numa família nuclear realizando as suas tarefas diárias, o trabalho penoso compensado pela beleza impressionante da ilha de mesmo nome. O ritmo suave com que a mãe conduz um barco a remos até à costa é quase musical, e quanto mais ela e o marido se aproximam da sua modesta herdade, maior aparece ao longe o ponto que é um dos seus dois filhos.

Patos grasnam, uma cabra mastiga alguma folhagem, e há a sensação de que tudo isso seria bastante idílico se Shindo não classificasse tão cuidadosamente o trabalho quotidiano. Pode não carregar a mesma corrente de pavor que, digamos, Jeanne Dielman, mas quando o nome do filme é precedido na tela por um cartão de título que diz “a terra difícil”, parece claro o suficiente que o tom não será exactamente festivo. Na primeira refeição com a família junta, Shindo divide-se entre os quatro comerem e o gado fazer o mesmo; a sua sobrevivência não está em dúvida imediata, mas a ideia de algum dia florescerem também não parece especialmente provável.

Embora nunca tenha sido explicitamente indicado, “A Ilha Nua” passa-se no presente de 1960. Uma década e meia depois, este é o dano colateral daquelas duas bombas. Até a fala pode ser comparada a um luxo que eles não podem pagar; é melhor que a mãe economize energia para os dois baldes de água que ela traz da ilha principal e equilibra sobre os ombros na viagem de volta todos os dias. A capacidade de se acostumar com quase tudo faz parte do que mantém as pessoas vivas, mas também pode ser responsável por anular qualquer esperança de que um dia as coisas possam melhorar. Para uma família tão à margem da sociedade, as noções de felicidade e descontentamento parecem nunca entrar em cena. Eles existem; isso terá que ser suficiente para o futuro próximo.

Uma pequena excepção ocorre no meio do filme, quando um peixe grande é capturado pelas crianças. A família faz uma viagem de um dia à ilha, incluindo uma refeição num restaurante, um passeio de teleférico e olhar para algumas montras. Há uma mulher a dançar em frente a uma televisão, do outro lado do vidro, e é como se eles tivessem vislumbrado outro mundo. “A Ilha Nua” cria um ambiente tão envolvente que tudo que não está directamente relacionado em manter-se vivo por mais um dia parece estranho, até mesmo irreverente. O mesmo pode ser dito quando, no caminho de ida ou volta para a escola, os meninos observam danças e outros rituais realizados pelos continentais – quem são essas pessoas, devem-se perguntar, e como conseguem tempo para esse tipo de coisa?

Acabamos descobrindo o nome de um membro da família depois de ele aparecer numa lápide perto do final do filme. Mesmo aqui não há finalidade, pois o processo de luto é interrompido pela necessidade de retornar ao quotidiano, por mais irrevogavelmente alterado que esteja.

Michael Nordine

Blog NotComing.com


domingo, 24 de março de 2024

The Life and Death of Colonel Blimp de Michael Powell e Emeric Pressburger

 


Título em Portugal: A Vida do Coronel Blimp

Realizador: Michael Powell e Emeric Pressburger

Ano: 1943

País: Reino Unido

Argumentista: Michael Powell e Emeric Pressburger

Fotografia: Georges Périnal

Elenco principal: Roger Livesey, Deborah Kerr, Anton Walbrook

Duração: 2 horas e 43 minutos

 

Quem é este Blimp que, com esse nome, nunca encontramos neste filme? Antes de mais o coronel Blimp foi uma criação do desenhador David Low, caricatura das fraquezas e da impossibilidade da adaptação às coisas novas que se revelavam em certos meios militares (parece familiar?), que "nasceu" nas páginas do Evening Standard a 20 de Abril de 1934, tendo "desaparecido" temporariamente entre 1942 e 1943, por razões que mais adiante se abordarão. Quem vem a ser então a "Blimpery" (o "Blimpismo")? Qual a sua essência? A melhor definição parece ter sido feita por um deputado trabalhista na Câmara dos Comuns: «It has, no doubt, two main characteristics. In the first place, there is the refusal to entertain new ideas, and in the second place, the determination to keep the bottom dog permanently in his place». Recusa portanto da inovação, refúgio na burocracia e rotina. Na altura em que Powell e Pressburger projectaram o seu filme a questão estava no auge e se o espírito de Blimp estava a ser expurgado do exército (e tinha de o ser para vencer a guerra) subsistia ainda o suficiente para olhar com incompreensão para o argumento. Desde logo, a reacção oficial ao filme foi de que se tratava de "propaganda negativa". E, no entanto, a crítica justificava-se, dados os sucessivos desaires das forças armadas inglesas no ano de 1942, tendo o Ministério da Informação declarado a semana de 16 a 23 de Fevereiro a mais negra desde Dunquerque (entre os desaires teve lugar, a 15, a rendição do general Perceval e 60.000 homens em Singapura). Powell e Pressburger tiveram o cuidado, porém, de deixar bem claro na introdução ao argumento, que o filme era dedicado ao Novo Exército Britânico aquele que, isento do espírito Blimp, se preparava para ripostar, «the men and the women who know what they are fighting for and are fighting this war to win it». De facto isso é evidente mesmo a um olhar superficial sobre “The Life and Death of Colonel Blimp”, cujo título original é, desde logo significativo, com a ênfase na morte (que o título português omite o que não deixará de ter sido curioso). Powell e Pressburger iniciam o seu filme com uma revolta aberta contra o velho espírito. Aquilo era uma guerra total onde o cavalheirismo não tinha lugar, daí que ao «The war starts at midnight» que enfaticamente repete o general Candy (o nome ideal para o nosso Blimp), Spud, o representante do novo exército responde que o inimigo não fica à espera. Se ele antecipou o ataque em relação à hora marcada para o início dos exercícios fê-lo como os japoneses fizeram em Pearl Harbor. Aliás o confronto entre Spud e Candy nos banhos turcos é extremamente significativo das diferentes concepções que tinham da guerra e da forma de a levar a cabo. De qualquer modo, Powell e Pressburger tiveram o cuidado em não fazer o que se poderiam considerar referências ao estado do exército então, fazendo de Candy um general aposentado em 1935 chamado ao serviço no início da guerra. Isso não impediu, porém, os problemas que enfrentou logo a partir da fase de rodagem. O Secretário de Estado para a Guerra, James Grigg escrevia numa nota a Churchill que o filme devia ser interrompido porque «it focuses attention on an imaginary type of Army officer who has become an object of ridicule to the general public». Ainda antes de estar pronto e de ser visto, Churchill acusou-o de ser «propaganda detrimental to the morale of the Army».O filme já tivera alguns problemas na fase de pré-produção tendo-lhe sido recusado o apoio logístico militar, o que é visível nas sequências da grande guerra que Powell e Pressburger elidem magistralmente com alguns planos de trincheira, cenários pintados e uma magistral contra-luz no último plano que marca o fim da guerra. Apesar de ter sido autorizado e ter usufruído de uma publicidade involuntária que lhe foi favorável com os problemas que teve, “The Life and Death of Colonel Blimp” não foi o êxito esperado e a sua apresentação nos Estados Unidos far-se-ia numa cópia muito amputada. Que nos reserva hoje, “The Life and Death of Colonel Blimp”, que era, de toda a sua carreira, o filme favorito de Emeric Pressburger? Pois, um nunca acabar de surpresas que o transformam numa das obras mais admiráveis do cinema britânico, e não me refiro exclusivamente à década de quarenta. Do genérico que reproduz a criação de David Low, ao plano final em que o velho Candy ao fazer continência ao exército novo que desfila é o eco simpático e terno de quem já não tem nada a ver com aquele mundo e assume a sua posição com dignidade. Àquele genérico vem de imediato contrapor-se o movimento irresistível que nos leva por um alucinante travelling ao longo das estradas acompanhando os motociclistas, grupo que se vai cindindo em cada encruzilhada provocando uma vertigem idêntica à de uma montanha russa. Os opostos estão apresentados: a placidez e a rotina contra a velocidade e o improviso que os novos vão revelar para alcançarem a vitória nas manobras. A partir de então os autores do filme podem apresentar as origens de Blimp: o flash-back faz-se num dos mais belos raccords que alguma vez se viu no cinema, dentro do mesmo e único plano: Candy e Stub em luta na piscina, o som que a pouco e pouco diminui enquanto a câmara avança solenemente pelo espaço rectangular da piscina e das águas agora pacíficas de onde emerge uma cabeça coberta de cabelo negro: Candy em jovem. Suspendam o fôlego, saboreiem religiosamente este momento admirável onde a água é azul, como só Spielberg nos voltará a dar quase quarenta anos depois, apenas um dos momentos prodigiosos da paleta cromática de George Perinal, aqui coadjuvado por Jack Cardiff. Ele é apenas um entre muitos outros, cada qual de cortar a respiração: toda a representação do duelo, por exemplo, apresentado com todos os rituais que o regulamento impõe (o delicioso encontro das testemunhas destinado a organizar os preparativos), e em que Candy vai encontrar Theo, oficial prussiano que dá a Anton Wallbrook uma das mais prodigiosas criações. Como nas outras sequências de acção, a Powell só interessa praticamente o que antecede o seu eclodir: um belíssimo movimento de grua deixa os adversários no começo da troca de golpes, para se encadear com outro que vai ao telhado do edifício em maqueta a um plano de conjunto. O movimento e o próprio enquadramento não deixa de evocar outro momento célebre na história do cinema: o que abandona a segunda mulher de Kane após as entrevistas com o jornalista no primeiro filme de Welles. Se Powell não recusa a sua simpatia a um representante de um romantismo aventureiro (o gesto impulsivo de ir a Berlim; a fabulosa conversa sobre Sherlock Holmes e o "Cão dos Baskervilles"; a genial sequência da cervejaria alemã com a música duma opereta em voga para provocar o adversário), a crítica que faz ao seu comportamento é lúcida e marcada pela ironia. Os raccords temporais com que se ilustra em breves planos muitos anos da vida de Candy são, neste último caso, dos mais belos que se viram: as imagens com os troféus que se vão acumulando acompanhadas por uma música tonitruante que culmina num momento decisivo: o capacete do huno no final da Grande Guerra; ou aquele que ilustra a sua vida de casado através das fotos de viagem terminando com uma página do álbum. Para além das circunstâncias do tempo, e das questões que à sua volta se levantaram, “The Life and Death of Colonel Blimp”, surge hoje como uma das grandes obras primas da história do cinema.

 Manuel Cintra Ferreira

Folha da Cinemateca Portuguesa

 


sábado, 9 de março de 2024

Far from Heaven de Todd Haynes


 

Título em Portugal: Longe do Paraíso

Realizador: Todd Haynes

Ano: 2002

País: Estados Unidos

Argumentista: Todd Haynes

Fotografia: Edward Lachman

Elenco principal: Julianne Moore, Dennis Quaid, Dennis Haysbert, Patricia Clarkson

Duração: 1 hora e 47 minutos

 

Cathy Whitaker vive com seu marido Frank o casamento perfeito. A cena de apresentação de “Longe do Paraíso” não poderia ser mais declaradamente reveladora: uma cidade perfeita, um carro perfeito, um jardim perfeito, dois filhos lindos, as múltiplas tarefas de uma dedicada mãe de família no final dos anos 50. Tamanha dedicação não poderia passar despercebida pela publicidade nem pela crónica local: Cathy é a sra. Magnatech, ícone publicitário da empresa para a qual seu marido trabalha. Um ícone publicitário é um exemplo, é um objecto de desejo: ser a sra. Magnatech é alcançar o posto mais almejado de uma sociedade, o triunfo final que comprova a felicidade do lar e o sucesso na construção de um casamento perfeito. Mas ser ícone publicitário diz também – e talvez acima de tudo – respeito à imagem: não basta simplesmente ser um exemplo, é preciso acima de tudo parecê-lo. Nisso, Cathy parece ser mais bem-sucedida ainda: sabe a resposta precisa para cada comentário possivelmente constrangedor, conduz com habilidade toda situação delicada em que ela (ou o marido) se encontra. Ao espectáculo que todas as pessoas da sociedade esperam e exigem dela, Cathy responde com um filme perfeito, uma performance magistral ornamentada de flores e sentimentos correctos.

E “Longe do Paraíso” é menos um filme sobre Cathy do que um filme de Cathy: da direcção de arte construída a partir das flores como “leitmotiv” à fotografia apoiada nas cores quentes e numa paleta “fifties” (fabuloso trabalho de Ed Lachman), a “mise-en-scène” do filme constrói-se em paralelo de sentimentos com a personalidade e com o papel social de sua heroína. Paralelos, mas que não se confundem. “Longe do Paraíso” faz questão de trabalhar sempre um tom acima, seja na interpretação dos atores – declamada e posada demais para os códigos do cinema feito hoje –, seja na cenografia milimetricamente exagerada e conotativa. Mas também, e talvez principalmente, pelos efeitos de dissonância criados entre a imagem (tanto a do filme, deslumbrante, quanto a imagem pública – roupas, maquiagem, cabelo, reputação – da personagem de Cathy) e a situação sentimental das pessoas que vemos na tela, de uma miséria existencial incapaz de ser purgada por nós, espectadoresa. Naturalmente, cria-se um curioso efeito de distanciamento, não muito distante do brechtiano – de fato, os dois Dennis, Quaid e Haysberg, jamais utilizam tácticas de interiorização, preferindo portar-se mais como “casos” do que como personagens –, mas que é incorporado por todos os elementos expressivos do filme, e não só pela actuação: da utilização da música de Elmer Bernstein à tentativa de “remake” de um melodrama “sirkiano”, tudo parece em momentos diversos nos jogar fora e dentro da trama, nos emocionar e depois (ou antes) perspectivar aquilo que estamos vendo.

 

Naturalmente, estamos diante de um filme-conceito. A tentativa de Todd Haynes com “Longe do Paraíso” não é a de uma estratégia reaccionária de trazer novamente para as telas o valor estético de um cinema como se fazia antigamente. A táctica aqui é a do dispositivo: apropriar-se de um repertório temático e estilístico hoje considerado ultrapassado ou “démodé” – os melodramas de Douglas Sirk, especialmente “O Que O Céu Permite” e “Espelho da Vida” – para trazer questionamentos sobre a sociedade americana de hoje (o racismo, o homossexualismo, o amor interracial) e sobre qualquer outro agrupamento (as pressões de grupo, a impossibilidade de um lugar – mais existencial do que geográfico – para dar vazão aos sentimentos mais verdadeiros). Pois Todd Haynes (…) é menos um esteta do que um provocador, e o seu interesse é menos restituir uma certa experiência de cinema do que problematizar um determinado estado de coisas social que envolve questões políticas (o papel da mulher, do negro, do homossexual na sociedade), mas também – e, talvez, principalmente – questões éticas: retomar a linguagem do melodrama é repensar a imagem que a América fez de si mesma durante o “boom” da sociedade de consumo e da cultura dos “gadgets”, e como vendeu essa imagem para o resto do globo. Afirmar que esse mundo vendido há 50 anos é um mundo "longe do paraíso" – por reprimir os únicos sentimentos que são significativos, por vender uma imagem falsa de perfeição, por fazer um povo inteiro interiorizar imperativos morais fortes demais para serem sustentados – parece ser a verdadeira preocupação do filme de Todd Haynes.

(…)

Em “Longe do Paraíso” há também algum sentimento lacunar em relação ao melodrama dos anos 50. Mas, desta vez, esse sentimento não decorre de nenhum cinismo em relação ao conjunto de filmes emulados, e sim de diferença na proposta e no tempo: enquanto os melodramas exigiam a imersão total do espectador na tela para que funcionasse o efeito estético, Todd Haynes precisa fazer com que esse elo seja rompido nos momentos certos – a cena em que as colegas da filha de Cathy se afastam dela, com uma encenação e disposição de lugares inteiramente conotativa, jamais poderia estar num filme de Sirk. Na superfície, pode acreditar-se que Haynes seja simplesmente um contador de histórias, mas hoje ele muito mais  "o cineasta mais militante da América".

“Longe do Paraíso” é tudo isso, mas é também uma surpreendente história de amor, em que dois sentimentos têm actuações tão decisivas quanto Julianne Moore e Dennis Haysberg: a fúria dos desejos e a decorrente tentativa de contenção. Da primeira vez, quando Cathy se encontra com Raymond, é um mal-entendido (ela vê um estranho, negro, no seu jardim; vai lá e descobre que é apenas o novo jardineiro). Da segunda vez, é resultante de uma coincidência: o seu lenço voa e cai nos traseiras da casa. Raymond, solícito, carinhoso e solitário (sua esposa falecera anos atrás), dá a Cathy toda a atenção que ela necessita naquele momento. Vivenciando um momento em que a ficção da mulher-exemplo acaba de ser rompida (ela presencia um marido nos braços de outro homem, no seu escritório), ela precisa aprender com Raymond o que é ser outro num mundo que só parece suportar uma determinada forma de vida (branca, heterossexual, feliz e em consumo). Surge então um amor que não pode ser dito, expresso e muito menos consumado: eles não podem ser vistos juntos num bar para brancos ou num restaurante para negros, na frente da casa de Raymond ou na rua, diante de pessoas dispostas a proteger a dama desde que ele a toque no braço.

Cathy é a "nice to negroes", diz o texto da jornalista gorda e bonacheirona que vai entrevistá-la para o jornal local. No início do filme, isso é considerado digno de louvor. E desde que os negros mantenham o seu lugar – ou seja, que não almejem estar em igualdade com os brancos –, tudo parece óptimo. Não há ameaça racial na cidade porque, como diz um dos personagens do filme, "nem temos negros aqui" (a frase é dita diante de um criado negro). Mas basta um rumor para que o "nice to negroes" lhe seja lançado à cara por um marido furioso. Cathy, no entanto, passará de benfeitora (no que tudo isso tem de paternalista) de negros a admiradora, e por fim vai ultrapassar a barreira que a sociedade lhe impõe, e apaixonar-se-á por Raymond. No dia em que seu novo amado vai partir da cidade definitivamente – porque os brancos não fazem mais negócios com ele e os negros apedrejam-lhe as janelas –, é o lenço lilás que a faz lembrar que ele irá partir. O instante do adeus é breve, as palavras de esperança são logo conjuradas pela impossibilidade da união, o final é triste, mas ao menos, por um instante na vida, Cathy Whitaker conseguiu voar em liberdade, como o seu lenço, directo para os braços do homem que ama. Nesse instante, ao menos, Cathy conseguiu enxergar aquilo que ela só tinha vislumbrado – as únicas palavras de amor que ela tinha proferido foram "Você é tão bonito", depois de tê-lo demitido –: a beleza não está numa tábua de adequações e no jogo de quem-é-quem social, mas nas intensidades das relações que se criam. Tanto a dor pessoal da protagonista quanto a miséria existencial da sociedade que a rodeia terminam emolduradas por belas flores brancas.

Texto (adaptado) de Ruy Gardnier

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