quinta-feira, 18 de abril de 2024

38. Danser i Mørket de Lars von Trier

 


Título em Portugal: Dancer in the Dark

Realizador: Lars von Trier

Ano: 2000

País: Dinamarca

Argumentista: Lars von Trier

Fotografia: Robby Müller

Elenco principal: Björk, Catherine Deneuve, David Morse, Peter Stormare, Cara Seymour

Duração: 2 horas e 20 minutos

 

Vívido, frustrante, incrivelmente belo e às vezes avassaladoramente brutal, "Dancer in the Dark" é um filme difícil de encaixar na nossa cabeça.

Se espectador o ponderar pelos padrões de Hollywood, provavelmente ficará desiludido, porque não é estereotipado - excepto na medida em que a tragédia humana é ela própria estereotipada na sua inevitabilidade e nos seus padrões de traição e perda.

O segredo está, portanto, em contar. E, ao recontextualizar o musical como uma fantasia neurótica (no espírito de "Pennies from Heaven" e "The Singing Detective", com toda a música e dança a processar-se na mente de uma personagem), o realizador Lars Von Trier conseguiu empreender uma formidável nova narrativa de comoventes temas clássicos.

O resultado é disperso, desajeitado e muitas vezes fascinante.

Bjork é a figura central como Selma, uma imigrante checa presa num rural Noroeste do Pacífico. Lutando contra a cegueira hereditária, ela trabalha longas horas numa fábrica na esperança de eventualmente conseguis pagar a operação que irá salvar a visão do seu filho.

Ela é uma heroína problemática – de bom coração, mas tímida, claramente esforçada, mas patologicamente orgulhosa para aceitar qualquer caridade. Os amigos de Selma amam-na desesperadamente, mas ela raramente os deixa aproximarem-se. Cathy (Catherine Deneuve como a amiga obstinada e de coração de manteiga), Jeff (Peter Stormare, um pedaço de madeira inarticulado e possível pretendente), o casal Linda (Cara Seymour) e Bill (David Morse, a própria personificação da banalidade do mal) - todos eles caem na órbita em torno desta mulher difícil, e as forças de atracção resultantes são longas, lentas e finalmente cataclísmicas.

A primeira meia hora do filme, com seu trabalho de câmara manual no estilo Dogma 95 e nuances emocionais densamente elaboradas, é lúgubre e até um pouco soporífica. Temos a sensação de estar imersos numa história a processar-se, mas apenas vamos tendo vislumbres de algo muito maior, um drama subliminar que obviamente vai explodir. Mas quando? E como?

Apesar de tudo isso, Bjork interpreta Selma intensamente, com as suas falas mansas e emocionalmente evasivas, parecendo quase autista. Dá vontade de protestar com o filme …

As coisas realmente começam a atear-se com o primeiro número musical, com uma música alucinante e uma coreografia nascida do barulho e da rotina de uma movimentada fábrica. A música de Bjork é, numa palavra, fantástica, e as tão comentadas 100 câmaras de Von Trier são utilizadas de maneira impressionante, capturando ângulos peculiares e fluidos detalhes coreográficos.

A cada evolução subsequente da história e a de cada número musical, surpreendente de intensidade e de clímax, somos atraídos mais e mais profundamente. Quando o inevitável se torna claro, estamos em total negação, mesmo sabendo que é inútil esperar que o destino não tenha o que lhe é devido.

Apesar da presença de superestrelas fotogénicas como Bjork e Catherine Deneuve, este filme não é sobre pessoas bonitas – mas sim sobre a beleza das pessoas. Von Trier mantém as suas personagens estranhas, desajeitadas, com comportamentos quase opressivamente medianos. Mas é tudo uma simulação. A mensagem final de "Dancer in the Dark" é de transcendência, da capacidade dos "pequenos" em superar as expectativas banais e claustrofóbicas da vida quotidiana e - para o bem ou para o mal - alcançar estados de ser extraordinários que mudam a vida das pessoas em seu redor.

As fugas musicais de Selma são escapismo puro e transformador. Sem eles, a sua vida, assim como o próprio filme, seria implacável, sombria, aterrorizante e quase desprovida de redenção. O que salva Selma – e todos nós, certo? - é nada menos que o amor verdadeiro, a vontade pura e a livre imaginação.

Texto (adaptado) de Josh Wilson

SFGate


terça-feira, 16 de abril de 2024

37. Le Mépris de Jean-Luc Godard

 


Título em Portugal: O Desprezo

Realizador: Jean-Luc Godard

Ano: 1963

País: França

Argumentista: Jean-Luc Godard

            baseado no romance “Il disprezzo” de Alberto Moravia (a edição portuguesa mais recente, intitulada “O Desprezo”, e foi editada pela Ulisseia, numa tradução de Maria Teresa de Barros Brito)

Fotografia: Raoul Coutard e Alain Levent

Elenco principal: Brigitte Bardot, Michel Piccoli, Jack Palance, Fritz Lang

Duração: 1 hora e 43 minutos

 

Por onde começar com “Le mépris (“O Desprezo”, 1963)? Se calhar a pergunta correcta será: por onde começar com um filme de Jean-Luc Godard? Como descodificar o caleidoscópio de metáforas, citações, simbologias, referências, piadas, trocadilhos e mentiras que o realizador põe em rotação em cada um dos seus filmes? A resposta é inevitavelmente pouco satisfatória. Diante de “Le mépris várias têm sido as leituras (mais ou menos simplistas) desse novelo ardilosamente armadilhado.

Alguns encararam o filme como um reflexo das complicações matrimoniais entre Godard e Anna Karina (estiveram casados entre 1961 e 1967), esta é a opção que toma Richard Brody, no livro “Everything Is Cinema: The Working Life Of Jean-Luc Godard” (2008) – e que dá pano para mangas de alpaca. Outra das leituras reflexivas procura, no filme dentro do filme, um comentário sobre a rodagem do próprio projecto. Esta é uma leitura que se delicia a descobrir paralelos entre o personagem de Jeremy Prokosch (interpretado pelo norte-americano Jack Palance) e os produtores associados do filme, Carlo Ponti e Joseph E. Levine. Esta leitura faz tanto mais sentido quando o filme que Fritz Lang roda em “Le mépris” é igualmente uma co-produção internacional milionária – Godard nunca tinha tido um orçamento de um milhão de dólares – onde o produtor insiste que se acrescente nudez e se vulgarize/telenovelize a “Odisseia” de Homero. O facto é que no caso de Godard isso aconteceu mesmo, e vários dos momentos onde Brigitte Bardot surge despida foram filmados a posteriori, por imposição dos produtores estrangeiros, em especial o americano Levine.

Uma terceira leitura, proposta por Jonathan Rosenbaum no ensaio «Critical Distance» (1997), vê no filme uma audaciosa (e consequentemente falhada) construção de um arco entre a antiguidade e a modernidade, em que o ponto de vista é o do primeiro e o alvo é o segundo – como se ouve em Bande-annonce de “Le mépris” (1963), “o novo filme tradicional de Jean-Luc Godard”. A favor desta leitura estão os vários momentos em que a mitologia grega (filtrada pelo cinema) e a mitologia do próprio cinema (filtrada pela “nouvelle vague”) se encontram e contrastam. Por exemplo, quando Prokosch lança um lata de película como se fosse um discóbolo da antiguidade, ou quando Michel Piccoli se passeia pelo apartamento de chapéu de Dean Martin – piscando o olho a “Some Came Running” (“Deus Sabe Quanto Amei”, 1958) de Vincente Minnelli – e toga grega feita de toalha de banho. Já a leitura sobre a ontologia do próprio cinema – e do olhar tingido pelas imagens dos filmes – é igualmente tentadora. O crítico João Lopes escreveu, a propósito do filme, que “há no cinema uma espécie de simpatia, propriamente erótica, com o acto de quem vê que é inegável, ou melhor, que é aquilo a partir do qual o próprio [cinema] existe.” Daqui o filme transforma-se no “meta-filme absoluto”, como lhe chama o programador da Cinemateca Antonio Rodrigues. E tudo vira metáfora do ver, pelo (e através do) cinema.

Rodrigues encara também “Le mépris” como uma provocadora anedota que, ao contrário do que é habitual, tem tanto mais graça quanto mais se explicar a piada – partindo daí para um desembrulhar de todas as pequenas provocações que Godard deixou pelo caminho, como as migalhas de pão de Gretel. O poemeto do pobre B.B. (Bertol Brecht) que Lang declama à rica B.B. (Brigitte Bardot). O personagem de Francesca Vanini que vem do filme de Rossellini [“Vanina Vanini” (1961)] e que por sua vez é interpretado por Giorgia Moll que “retoma” o papel de “The Quiet American” (“Um Americano Tranquilo”, 1958) de Joseph L. Mankiewicz – realizador sobre o qual Godard publicou o seu primeiro artigo e filme que Godard adorava. A elevação da “citação com referência bibliográfica” de Lang (que vai buscar Dante, Hölderlin e Corneille, só lhe faltando referir a página) é posta em oposição ao livrinho vermelho de Prokosch, onde nada do que se diz galantemente se sabe de onde vem, ou por quem foi dito. E a partir daí – porque Godard nunca se leva tão a sério como parece – temos a citação de abertura, atribuída a André Bazin, mas que não se sabe se a ele pertenceu de facto (há a possibilidade de ser uma deturpação de um texto de Michel Mourlet sobre os filmes indianos de Lang). Assim como é igualmente apócrifa a frase de Louis Lumière sobre o cinema ser uma invenção sem futuro. Ou ainda o jogo com a imagem pública de Bardot – que há época era a mega estrela francesa, depois dos filmes com Roger Vadim – que além de mostrar o rabinho (Brody interpreta o plano sequência sobre o traseiro da actriz, com as três cores vermelho, branco e azul, como a literalização da opinião pública de que aquelas duas nádegas eram o mais precioso tesouro francês), surge com peruca negra, qual Anna Karina em “Vivre sa vie: Film en douze tableaux” (“Viver a Sua Vida”, 1962), por oposição à sua imagem de marca, a cabeleira-choucroute. E esta é apenas uma súmula das pequenas graçolas do Sr. J.L.G.

A relação de Godard com o cinema clássico e com o cinema do final dos anos 1950 e inícios de 1960 é outro filão possível – e muito generoso para o garimpeiro cinéfilo. Numa das primeiras versões do argumento do filme – Levine impôs que, pela primeira vez, Godard filmasse com um guião (ainda que esse guião viesse a tomar formas improváveis) – o personagem de Paul Javal é descrito como um personagem de “L’année dernière à Marienbad” (“O Último Ano em Marienbad”, 1961) que deseja pertencer ao “Rio Bravo” (1959). O filme faz-se nesse intervalo que tão bem souberam habitar os realizadores da “nouvelle vague”, entre o classicismo americano e a modernidade do cinema do pós-guerra. De facto, há inúmeros cartazes e referências que surgem nas paredes e nos diálogos (de Hitchcock a Rossellini, de Hawks a Minnelli, passando por Ray e, claro, Fritz Lang). A favor desse intervalo, que é também um intervalo comercial entre o cinema de autor e o trabalho alimentício, Paul aparentemente terá escrito tanto um filme chamado “Toto vs. Hercules” que é, certamente, uma farpa lançada a Monicelli e ao seu “Totò e i re di Roma” (1951), mas também terá ajudado (ele que é um “script doctor”) em “Bigger Than Life” (“Atrás do Espelho”, 1956) de Nicholas Ray – sendo por isso inspirado, talvez, na dupla Cyril Hume e Richard Maibaum que, como Paul, vinham do teatro e acabaram a escrever vários filmes da série do Tarzan e do 007.

E como sub-produto desta autópsia cinéflia, ainda se pode ver em “Le mépris” as ressonâncias (vindas de trás e caminhando para diante) dentro da própria obra de Jean-Luc Godard. A cena da discussão caseira que parece ser a “sequela” – como o diz Rosenbaum – de uma cena semelhante em !À bout de souffle” (“O Acossado”, 1960) e que não está assim tão distante da famosa cena do morto em “Pierrot le fou” (“Pedro, o Louco”, 1965), nem mesmo das cenas de casa de banho em “Adieu au langage” (“Adeus à Linguagem”, 2014), onde a profundidade de campo e a distorção do scope já anunciavam as estrábicas três dimensões desta última incursão. E o número de personagens principais chamados Paul nos seus filmes? E o numero de vezes em que Godard surge como discreto secundário (aqui como assistente de Lang)? Ou as outras vezes em que Godard citou a falsa epígrafe de Bazin, em “Histoire(s) du cinema” (“História(s) do Cinema”, 1989-1999) e “For Ever Mozart” (“Para Sempre Mozart”, 1996). Ou citou o próprio “Le mépris”, nas “Histoire(s)”, claro, e também em “JLG/JLG – autoportrait de décembre” (“J.L.G. por J.L.G.”, 1994), onde refere que uma das suas falhas como “movie maker/goer” foi não ter feito o filme com Frank Sinatra e Kim Novak, como era o seu desejo original (em vez de Loren e Mastroianni, que era o desejo de Ponti, ou Bardot e Piccoli que foi o meio termo possível).

Enfim, “Le mépris” tem essa qualidade rara no cinema, mas muito comum no cinema de Jean-Luc Godard, de permitir uma quase infinidade de leituras. Como se cada plano, cada frase escrita ou dita, cada presença, cada gesto, fossem já a ponta de um pensamento (profundo, ou nem tanto assim…), do qual, puxando, tudo vem por arrasto. Um tudo que é sinóptico do cinema, na sua falsa equivalência com a vida. E é no fundo o argumento que procuro defender: “Le mépris” é filme diamantino, no sentido em que tem múltiplas faces e todas elas reflectem em diferentes sentidos. É um desses filmes cheios, pejados de universos, onde o ar se encontra rarefeito – sempre na vertigem do mofo da citação, mas ainda assim fresco na articulação improvável entre esses mesmos universos. É um objecto fílmico sobre o qual cada um parece conseguir encontrar sinais do que procura e, ao contrário de outros filmes, não são os espectadores que moldam o filme, é o filme que nos conduz o olhar ao longo das suas arestas.

Mas se isto é evidente em “Le mépris”, é apenas corolário da obra do realizador franco-suíço. Nesse sentido, a obra de Godard será teorema da própria experiência cinéfila. É aqui que se encontra o cerne deste filme: vê-lo é encontrar reflectida a imagem do espelho que é o cinema. Um “mise en abyme” de reflexões que, qual prisma, refracta o real, decompondo-o em imagens – não é por acaso que na primeira cena entre Piccoli e Bardot este a observa através de um espelho. Para Godard, que é o mesmo que dizer, para o cinéfilo – vítima dessa “doença que eclode na puberdade mas pode ser ultrapassada com algum acréscimo de convívio”, como o define o Miguel Gomes –, o cinema é filtro (e escudo) da vida. Vive-se para e através do cinema e “Le mépris” é o enxugamento desse embate (combate?) que se dá entre a vida e o cinema.

Luís Miguel Oliveira conclui o seu ensaio «Um lugar na terra como no céu» (1999) com contornos semelhantes ao meus: “Godard acreditou que o cinema podia ser ‘tudo’ , porventura como nunca ninguém acreditou. (…) Por que é que ela [a sua história] nos toca tanto? Talvez porque ela ecoe a nossa história, a história de todos os cinéfilos ou de todos aqueles que um dia acreditaram que a cinefilia abria um mundo ‘de acordo com os nossos desejos’.” “Le mépris” é um filme que ainda acredita – já não de forma pia – nos poderes do cinema enquanto ferramenta do próprio viver. E digo que não é pia a crença porque já tudo está em ruínas: as esculturas gregas estão amputadas, os estúdios da Cinecittà estão decrépitos (e foram vendidos para uma “five and ten cent store”), os realizadores clássicos de Hollywood já só conseguem filmar na Europa (e mal) e como se ouve logo no terceiro plano do filme, “c’est la mort du cinéma” – traduzindo “It’s my last kingdom”. A este propósito, o conto que ouvimos da boca de Paul sobre Ramakrishna e o seu discípulo é sintomático da relação do cinéfilo com o cinema e a vida. O discípulo, parecendo-lhe que o seu desenvolvimento espiritual não era rápido o suficiente, abandonou o mestre e resolveu estudar sozinho. Passados vários anos regressa e, diante de Ramakrishna, caminha sobre as águas do rio sem se molhar. O sábio observa e comenta: “há dez anos já fiz exactamente isso com uma moeda e uma gôndola”. O discípulo é como o cinéfilo: acreditou de mais no cinema, ao ponto de o achar mais real que o real. Moldou o mundo à imagem do cinema, perdendo o contacto com a matéria das coisas e das pessoas.

Godard opera esta enganosa metáfora na articulação entre o primeiro e o último plano de “Le mépris”. No primeiro, a câmara através da qual vemos encontra-se com a que nos é mostrada, os olhares das duas cruzam-se, olhando-se de frente – o cinema que se olha nos olhos. No segundo, a câmara de Fritz Lang filma Ulisses que olha pela primeira vez a sua pátria, Ítaca, depois de vários anos de viagem. A câmara de Godard filma esse momento da rodagem e, num “travelling” seguido de uma panorâmica para a esquerda, subjectiva-se, coincidindo com o olhar do próprio Ulisses. Isto é, o cinema moderno toma o olhar do protagonista da “Odisseia” através do cinema clássico americano – os olhos que se olham no cinema. E através desse olhar… o horizonte poisado num mar azul.

Ricardo Vieira Lisboa

Blog À Pala de Walsh


domingo, 14 de abril de 2024

36. Roma, città aperta de Roberto Rossellini

 

Título em Portugal: Roma, Cidade Aberta

Realizador: Roberto Rossellini

Ano: 1945

País: Itália

Argumentista: Sergio Amidei, Alberto Consiglio, Federico Fellini, Ferruccio Disnan, Celeste Negarville e Roberto Rossellini

Fotografia: Ubaldo Arata

Elenco principal: Anna Magnani, Aldo Fabrizi, Marcello Pagliero, Francesco Grandjacquet, Maria Michi, Vito Annichiarico

Duração: 1 hora e 40 minutos

 

O filme tem sido tradicionalmente elogiado pelo seu realismo. Mas como é “elaborado” este realismo? Há dois aspectos que exigem reflexão. O primeiro, no qual muitos críticos se concentraram, tem a ver com os cenários ou a sua ausência, com os actores ou com a utilização de não-actores, com a câmara portátil, com o grão particular do filme que lhe dá uma autenticidade de noticiário, com uma produção estranha à indústria dominante, e com um guião resultante de uma contribuição colectiva. Todos estes factores são importantes e contribuem, de facto, para dar forma a uma narrativa cuja aparência é muito diferente da dos 'telefoni bianchi' italianos, bem como dos habituais padrões narrativos americanos.

 

Por outro lado, é necessário examinar a estrutura que sustenta a história em “Roma, cidade aberta .

 

Até que ponto é diferente do modelo americano dominante? A este respeito, é necessário uma resposta muito clara. O ofício e a habilidade que emergem em “Roma, Cidade Aberta” pertencem a um director que adquiriu domínio total e absoluto no modo de representação criado pela tradição cinematográfica burguesa, a partir de David W. Griffith.

 

É um modo de representação cujo objectivo fundamental é fazer com que o público suspenda a sua descrença e entre no universo do filme como se este fosse o mundo real; o público é de facto levado a perceber o tempo e o espaço da acção cinematográfica como se fosse homogéneo, contínuo, “real”: a insistência na “realidade” de um ponto de vista estrutural leva de facto a ocultar o processo de produção de significado. A actividade significativa é cancelada na tentativa de nos fazer consentir, de nos fazer acreditar que “tudo o que vemos é como o mundo real”, de nos fazer exclamar “que maneira prodigiosa de apreender a realidade em condições tão difíceis!”. E esta é precisamente a principal característica do cinema burguês 'ilusionista', que surge na obra de Rossellini a partir de uma tensão verdadeiramente fascinante [...] o 'realismo' de “Roma, cidade aberta” não é uma questão que tenha a ver com a gravação de uma realidade pré-existente, mas antes baseada numa sensibilidade cinematográfica altamente sofisticada[...]


Numa entrevista, Rossellini declarou que 'a grande missão da arte' é 'libertar os homens do seu condicionamento'. Uma análise precisa de “Roma, cidade aberta” revela que o realizador conseguiu apenas de forma muito parcial [...]. A utilização de não-atores para muitos papéis, a filmagem em exteriores (apenas para algumas cenas do filme) e outras características bem conhecidas do neo-realismo são manifestações superficiais que em nada alteram o nosso condicionamento bem enraizado em relação a um certo tipo de cinema: o da ilusão e da verossimilhança.


A forma como Rossellini constrói a 'realidade' de “Roma, cidade aberta” (a eficácia da sua atmosfera a nível emocional e a sua credibilidade) ocorre graças à utilização de códigos de representação que são precisamente os dos esquemas dramatúrgicos habituais, que ele próprio denigre. A estrutura em que se baseia “Roma, cidade aberta”, de nenhum ponto de vista 'nos liberta do nosso condicionamento', que em vez disso permanece dependente dos mesmos códigos cinematográficos da história, em nome da representação transparente, exactamente aqueles 'clichés' do qual Rossellini tenta permanecer estranho.

 

 

Martin Walsh , 

 


quinta-feira, 11 de abril de 2024

35. Der blaue Engel de Josef von Sternberg

 

Título em Portugal: O Anjo Azul

Realizador: Josef von Sternberg

Ano: 1930

País: Alemanha

Argumentista: Carl Zuckmayer, Karl Vollmöller, Robert Liebmann e Josef von Sternberg

            baseado no romance “Professor Unrat” de Heinrich Mann (a última edição portuguesa é da E-primatur, de 2023, com tradução de Bruno C. Duarte)

Fotografia: Günther Rittau

Elenco principal: Marlene Dietrich, Emil Jannings, Kurt Jerron, Hans Albers

Duração: 1 hora e 48 minutos

 

Um dos aspectos menos apreciados das novas tecnologias cinematográficas é que elas muitas vezes resolvem problemas criando um novo conjunto de complicações e desafios. Os primeiros filmes sonoros dão muitos exemplos desse tipo, mesmo aqueles que se tornaram bem-sucedidos e icónicos, como “O Anjo Azul”, melodrama alemão de 1930, dirigido por Josef von Sternberg.

O filme baseia-se em “Professor Unrat”, romance de Heinrich Mann. A trama passa-se numa cidade portuária sem nome no norte da Alemanha e o personagem principal é o professor Immanuel Rath (interpretado por Emil Jannings), professor que se considera um dos membros mais respeitados da comunidade. Rath, que mora sozinho, na verdade não é apreciado por ninguém, especialmente pelos seus alunos, que detestam sua forma autoritária de gerir a sala de aula. Ao descobrir que alguns dos alunos distribuem fotografias provocadoras de Lola Lola (interpretada por Marlen Dietrich), cantora principal do decadente cabaret “The Blue Angel”, ele convence-se de que alguns deles frequentam aquele lugar. Ele vai até lá para confrontá-los, mas acaba no camarim de Lola, onde não demora muito por se encantar e seduzir pela bela jovem. Quando eles passam a noite juntos, ele falta às aulas e perde o emprego. Em vez disso, ele casa-se com Lola e, depois de alguns anos, o seu dinheiro acaba-se e ele é forçado a aceitar empregos humilhantes como membro da trupe itinerante de Lola. Tudo culmina quando ele é forçado a actuar como palhaço na sua cidade natal, enquanto Lola nos bastidores não esconde suas intenções adúlteras com o jovem e arrojado homem forte Mazeppa (interpretado por Hans Albers).

 “O Anjo Azul” foi o primeiro filme totalmente sonoro na carreira do cineasta austríaco Josef von Sternberg, que já havia granjeado nome com uma série de melodramas e filmes de género visualmente impressionantes na era muda de Hollywood. Foi também uma das produções mais caras e ambiciosas da UFA, estúdio que dominou a indústria cinematográfica da Alemanha entre as guerras. O produtor Erich Pommer viu a nova tecnologia de som como uma oportunidade de proporcionar ao público algo que eles não poderiam ter experimentado antes na tela – música e conversação. O guião, em que grandes trechos da trama acontecem no cabaret, serviu idealmente este propósito e permitiu que o filme apresentasse canções que se tornariam grandes sucessos nas décadas seguintes. Eles incluem “Ich bin die Fesche Lolla” e “Ich bin von Köpf bis Fuss auf Liebe engestellt”, este último usado como tema principal do filme e mais conhecido na sua edição inglesa “Falling in Love Again (Can't Help It)” . Todas essas músicas foram interpretadas por Marlene Dietrich, uma artista relativamente desconhecida de Berlim. Dietrich tem um desempenho maravilhoso no filme, embora algumas de suas performances sejam afectadas pela qualidade ainda relativamente baixa das gravações sonoras, significativamente inferiores às versões das mesmas músicas gravadas por Dietrich posteriormente em vinil.

Mas foi a presença icónica de Dietrich na tela como femme fatale “vampira” que fez deste filme um enorme sucesso e instantaneamente a transformou numa grande estrela internacional. O seu traje, embora relativamente reduzido, é bastante inofensivo para os padrões da Alemanha de Weimar; mas Dietrich, mesmo assim, consegue exalar erotismo e seduzir o público com a mesma facilidade com que a sua personagem conquista um professor conservador de meia-idade. Dietrich desempenha esse papel com bastante naturalidade. Lola não é uma sedutora calculista; ela conhece, seduz e casa-se com o professor por impulso, assim como o trai da mesma forma. Dietrich tem o mesmo efeito sobre intelectuais de classe média aparentemente respeitáveis ​​e sobre o rude capitão do mar (interpretado por Wilhelm Diegelmann) como com os jovens estudantes excitados de Rath. E ela tem plena consciência do efeito que tem sobre os homens, ao admiti-lo nas fatalistas letras das suas músicas.

Emil Jannings, actor suíço que interpreta o Professor Rath, era na época uma estrela de produção muito maior que Dietrich, com uma carreira de sucesso em Hollywood, onde obteve o primeiro Oscar de Melhor Actor. Ele tem uma actuação muito forte em “O Anjo Azul”, criando uma personagem que o público pode desprezar, ridicularizar e sentir pena no final melodramático do filme. Por estranha ironia, o seu destino na vida real lembra de alguma forma o destino do Professor Rath. Ao contrário de Dietrich, que imediatamente conseguiu obter um contrato com a Paramount, foi para Hollywood e se tornou uma estrela global indiscutível, ele decidiu ficar na Alemanha e mais tarde apoiou o regime nazi e os seus esforços de propaganda na Segunda Guerra Mundial, terminando a sua vida na infâmia. Este destino foi, no entanto, muito mais gentil do que aquele que sofreu outro membro do elenco, Kurt Gerron, actor que interpreta Kiepert, mágico intimidante e manipulador e líder da trupe de Lola. Catorze anos depois deste papel, Gerron, um judeu austríaco, foi assassinado pelos nazis durante o Holocausto da forma mais cínica e dúbia, depois de ter sido coagido a ajudar na sua propaganda.

Quem assistir a “O Anjo Azul” também notará que o filme, apesar de ser “talkie”, na verdade apresenta relativamente poucos diálogos. Isto deve-se em parte a certos problemas práticos trazidos pela tecnologia de som. Ao contrário dos filmes mudos, que poderiam facilmente ser traduzidos para línguas estrangeiras apenas com a inserção de diferentes intertítulos, os filmes sonoros exigiam novas tecnologias. A dublagem ainda era considerada muito complicada e cara, assim como as legendas. Em vez disso, uma solução um pouco mais inoperente para o problema (ainda praticada por várias indústrias cinematográficas indianas) foi encontrada ao fazer versões diferentes do mesmo filme em idiomas diferentes. “O Anjo Azul”, além do original em alemão, teve também outra versão em inglês com mesmo enredo, director e elenco, que foi, com grande sucesso, distribuída nos EUA e noutros países anglófonos. Esta versão é, no entanto, considerada inferior à versão em língua alemã, porque os actores, incluindo um Jannings mais experiente, ainda tiveram que lutar com sotaques marcantes. Apesar destas dificuldades, “O Anjo Azul” tornou-se um grande sucesso internacional e garantiu o seu lugar na história do cinema. Von Sternberg e Dietrich continuaram a sua cooperação em Hollywood, de onde resultaram mais cinco filmes. “O Anjo Azul” foi posteriormente tema de vários remakes, incluindo uma reinterpretação bastante livre em “Lola”, drama de 1981 de Rainer Werner Fassbinder, estrelado por Barbara Sukowa. A actuação de Marlene Dietrich também inspirou muitos números musicais memoráveis, como os de Helmut Berger em “Os Malditos”, de Visconti, Madeline Kahn em “Balbúrdia no Oeste” (Mel Brooks, 1974) ou de Carice Van Houten em “Livro Negro”, de Verhoeven.

Texto (adaptado) de Drax

Blog Peakd


segunda-feira, 8 de abril de 2024

32. Les enfants du paradis de Marcel Carné

 

Título em Portugal: As Crianças do Paraíso

Realizador: Marcel Carné

Ano: 1945

País: França

Argumentista: Jacques Prévert

Fotografia: Roger Hubert e Marc Fossard

Elenco principal: Arletty, Jean-Louis Barrault, Maria Casarès, Pierre Brasseur

Duração: 3 horas e 2 minutos

 

Marcel Carné é um pequeno capitulo, Jacques Becker uma nota de rodapé: a genialidade de Jean Renoir fez baixas. E, no entanto, este “Les enfants du paradis (As Crianças do Paraíso, 1945) permanece um marco, o filme de que se fala quando se fala de Carné, um expoente do realismo poético francês numa época em que a produção gaulesa conseguia ombrear com a produção americana, último filme da era dourada que a Segunda Guerra Mundial destruiu.

A uma primeira vista, “Les enfants du paradis” parece um evidente modelo de filme escapista, como o Musical durante a Grande Depressão, mas a produção da obra foi tudo menos pacífica. Iniciadas as filmagens em Nice, em plena República de Vichy, com a permissão dos censores colaboracionistas, viu o financiamento italiano, com que havia sido planeado, claudicar aquando da invasão da Sicília pelos Aliados. Entre o pára-arranca ordenado pelas autoridades e a deslocação das filmagens para Paris e subsequente regresso a Nice, passaram-se dois anos de filmagens. Entre a equipa, um dos actores foi preso pela Gestapo em pleno cenário e o cenógrafo Alexandre Trauner e o compositor Joseph Kosma, judeus, trabalharam todo o filme na clandestinidade. Por último, como a direcção cultural da República de Vichy só permitia filmes até 90 minutos de duração, “Les enfants du paradis” foi dividido em duas partes de 90 minutos, sendo apenas exibido com os seus 180 minutos de duração depois da Guerra.

História de como quatro homens possuem a mesma mulher, Garance (interpretada pela esfíngica Arletty), sem nunca a conseguirem amar plenamente, “Les enfants du paradis” conta com inspiração verídica para a sua intriga. Baptiste Deburau (1796-1846) e Frederick Lematre (1800-1876) foram dois dos mais famosos actores da sua época e Pierre-Francois Lacenaire (1800-1836) um famoso criminoso acerca de quem se diz ter sido a inspiração de Dostoievski para o Raskolnikov de “Crime e Castigo”. Porém, e se mais provas fossem precisas, convém lembrar que ambas as partes do filme começam e acabam com cortinas, respectivamente, a erguerem-se e a descerem. O fulcro da obra reside na relação do teatro com a vida, de duas maneiras diferentes. A primeira, na medida em que os actores, na sociedade francesa do século XIX, representavam como que um semi-grupo social, com as suas rotinas e o seu próprio lugar, geográfica e sociologicamente; a segunda porque, nas personagens principais, toda a sua conduta mimetiza a forma de teatro que preferem: Baptiste, o mimo, é tímido e sonhador, rejeitando a carnalidade dos seus sentimentos por Garance, preferindo-lhes a idealização; Lemaitre é verboso, carnal e libertino, preferindo a tragédia shakespeariana ou a comédia como formas de expressão: o Conde detesta teatro e só conhece o mundo dos duelos e da imposição forçosa e material; e Lacenaire encena a sua vida de crime com a desfaçatez de uma farsa, indo para o cadafalso com um sorriso no rosto. Nesse sentido, Garance pode ser vista como uma figura teatral (e é-o numa pantomina), mas é também a mais humana das suas personagens, a mais disponível para amar de todas, incapaz de entrar no jogo das outras personagens, obedecendo apenas, mesmo que apenas interiormente, à sua vontade e à força das suas paixões. Ao ser a mais humana, é também ela que quebra o tecido harmónico que perfaz o mundo teatral: ela defende que o amor é simples, a realidade e os conflitos entre os homens que a querem mostram o contrário. O drama humano, através da disrupção que a sua beleza traz, não acaba num final feliz, nem todos os papéis são recompensados ou punidos em conformidade (veja-se Nathalie, que tão bem desempenhou o papel de esposa de Baptiste e se vê abandonada no final do filme). Como nos melhores exemplos do chamado realismo poético francês, o fatalismo é a palavra de ordem e aqui prende-se com a impossibilidade de encontrar na vida a mesma perfeição que se encontra no palco.

Pela parte de quem assina este texto, os méritos de “Les enfants du paradis são evidentes: a forma agradável como o seu tempo passa; a sumptuosidade e verosimilhança dos seus décors e da sua reconstituição de época; a imensa musicalidade dos diálogos de Jacques Prévert, virtuosos na poesia como no vernáculo; o classicismo sem esforço da câmara de Carné, ainda mais complicado tendo em conta as dificuldades de produção da obra. Ainda assim, a alegada visão política possível de atribuir à obra em que Garance, com a sua liberdade de escolha, seria um exemplo da capacidade de resistência da França ocupada, o Conde a brutalidade do regime nazi, a arte teatral de Baptiste e Lemaitre a alma inabalável do povo francês e Larcenaire um símbolo maior de uma perturbação da ordem estabelecida, parece-nos rebuscada, sendo mais verosímil ver o filme na sua literalidade de melodrama. Mas até que ponto, considerando o resultado final e o que fariam posteriormente, nesta ligação entre teatro, cinema e vida, o próprio Renoir, Ophüls e até cineastas modernos como Bergman e Rivette, não estaremos perante uma espécie de “Gone With the Wind” (“E Tudo o Vento Levou”, Victor Flemming, 1939) francês, um filme exemplificativo de uma era dourada, a um tempo zénite e último estertor, mais importante pelo que representa do que pelo que é individualmente? Fica para cada espectador decidir.

Miguel Domingues                                                                                                              

Blog À Pala de Walsh


34. Million Dollar Baby de Clint Eastwood

 


Título em Portiugal: Million Dollar Baby – Sonhos Vencidos

Realizador: Clinton Eastwood

Ano: 2004

País: Estados Unidos

Argumentista: Paul Haggis

baseado na colectânea de contos “Rope Burns: Stories from the Corner” de F.X. Toole (1930-2002)

Fotografia: Tom Stern

Elenco principal: Clint Eastwood, Hilary Swank, Morgan Freeman, Jay Baruchel, Margo Martindale

Duração: 2 horas e 12 minutos

 

"Million Dollar Baby" de Clint Eastwood é uma obra-prima, pura e simples, profunda e verdadeira. Conta a história de um velho treinador de boxe e uma provinciana miúda que pensa que pode ser pugilista. É narrado por um “ex-boxeur” que é o melhor amigo do treinador. Mas não é um filme de boxe. É um filme sobre um pugilista. O que mais é, tudo o que é, quanto profundo é, que poder emocional contém, não pode ser referenciado nesta crítica, porque iria detiorar a experiência de acompanhar esta história até aos segredos mais profundos da vida e da morte. Este é o melhor filme do ano.

Eastwood interpreta o treinador, Frankie, que dirige um ginásio decadente em Los Angeles e, ao mesmo tempo, lê poesia. Hilary Swank interpreta Maggie, do sudoeste do Missouri, que trabalha como empregada de mesa desde os 13 anos e vê o boxe como a única maneira de escapar deste trabalho.

De resto, ela própria diz: “Eu poderia muito bem voltar para casa e comprar uma velha roulote, arranjar uma fritadeira grande e alguns Oreos”. Morgan Freeman é Scrap, que foi dirigido por Frankie na luta pelo título de boxe. Agora mora numa sala do ginásio e é parceiro de Frankie em conversas que se prolongam ao longo de décadas. Quando Frankie se recusa a treinar uma "miúda", é Scrap quem o convence a dar uma chance a Maggie: "Ela cresceu a saber apenas uma coisa. Que é só lixo."

Estas três personagens são encaradas com uma clareza e verdade raras em filmes. Eastwood, que não carrega um grama extra no seu magro corpo, também não coloca nenhuma “gordura” na tela: mesmo quando o filme se aproxima da emoção profunda das suas cenas finais, ele não busca sentimentos fáceis, mas considera estas pessoas de forma equilibrada, enquanto elas fazem o que têm de fazer.

Alguns realizadores perdem o foco à medida que envelhecem. Outros ganham, aprendendo a contar uma história que contém tudo o que é preciso e absolutamente nada mais. "Million Dollar Baby" é o 25º filme de Eastwood como realizador, e o melhor. Sim, “Mystic River” é um óptimo filme, mas este encontra a simplicidade e a franqueza da narrativa clássica; é o tipo de filme em que você fica sentado em silêncio no cinema e é profundamente envolvido por vidas que passam a ser importantes para si.

Morgan Freeman é o narrador, tal como foi em “The Shawshank Redemption”, com que este filme se assemelha na forma como o personagem Freeman descreve um homem que se tornou o seu “estudo” ao longo da vida. A voz é monótona e factual: você nunca ouve Scrap colocar um efeito ou alterar o tom nas suas palavras. Ele só quer contar o que aconteceu. Ele diz como a miúda entrou no ginásio, como ela não quis ir-se embora, como Frankie finalmente concordou em treiná-la e o que sucedeu então. Mas Scrap não é apenas um observador; o filme dá-lhe vida própria quando os outros estão fora da tela. O filme é sobre estas três pessoas juntas.

Hilary Swank está surpreendente como Maggie. Cada nota é verdadeira. Ela reduz Maggie a uma intensidade feroz. Repare na cena em que ela e Scrap se sentam numa lanchonete, e Scrap lhe conta como perdeu a visão de um olho e como Frankie se culpa por não ter lançado a toalha ao chão. É uma cena importante para Freeman, mas quero que observe como Swank mostra que Maggie não faz absolutamente nada e apenas ouve. Sem “reações”, sem pequenos acenos de cabeça, sem linguagem corporal, excepto a perfeita quietude, a profunda atenção e um olhar inabalável.

Há outra cena, à noite, dentro de um carro, depois de Frankie e Maggie visitarem a família de Maggie. A visita não correu bem. A mãe de Maggie é interpretada por Margo Martindale como um monstro ignorante e egoísta. “Não tenho ninguém além de ti, Frankie”, diz Maggie. Isto é verdade, mas não cometa o erro de pensar que existe um romance entre eles. É diferente e mais profundo do que isso. Ela conta a Frankie uma história que envolve o seu pai, a quem ela amava, e um cão velho que ela também amava.

Veja como o diretor de fotografia Tom Stern usa a luz nesta cena. Em vez de usar as habituais “luzes do painel”, que misteriosamente parecem iluminar todo o banco da frente, observe como ele faz com que os seus rostos deslizem para dentro e para fora da sombra, e como às vezes não conseguimos vê-los, apenas ouvi-los. Observe como o ritmo dessa iluminação combina com o tom e ritmo das palavras, como se o efeito visual acariciasse a conversa.

É um filme com um negro quadro geral: muitas sombras, muitas cenas nocturnas, personagens que parecem recuar para destinos privados. É um “filme de boxe”, no sentido em que acompanha a carreira de Maggie e possui diversas cenas de luta. Ela vence desde o início, mas a questão não é essa; "Million Dollar Baby" é sobre uma mulher determinada a fazer algo por si mesma, e um homem que não quer fazer nada por essa mulher e que finalmente fará tudo.

O guião é de Paul Haggis, que trabalhou principalmente para televisão, mas com este ganhou uma nomeação para um Oscar. Outras nomeações, possíveis Oscares, irão para Swank, Eastwood, Freeman, para o filme e para muitos técnicos - e possivelmente para a trilha musical original, composta por Eastwood, que sempre faz o que é exigido e nunca distrai.

Haggis adaptou a história de “Rope Burns: Stories From the Corner”, um livro de 2000 de Jerry Boyd, um “manager” de boxe com 70 anos, que o subscreveu com o pseudónimo de "F.X. Toole". O diálogo é poético, mas nunca sofisticado. "Quanto é que ela pesa?" – pergunta Maggie a Frankie sobre a filha que ele não vê há muitos anos. "Os problemas na minha família apareceram a pouco e pouco." E quando Frankie vê os pés de Scrap em cima da mesa: “Onde estão os teus sapatos?” Scrap: "Estou a arejar os meus pés." E a conversa sobre os pés continua por quase um minuto, revelando a paciência do filme em evocar esta personagem.

Eastwood está atento aos personagens coadjuvantes, que fazem o mundo em seu redor parecer mais real. O mais inesperado é um padre católico visto, simplesmente, como um homem bom; todos os filmes parecem dar um toque negativo ao clero atualmente. Frankie vai à missa todas as manhãs e faz suas orações todas as noites, e o padre Horvak (Brian F. O'Byrne) observa que qualquer pessoa que vai à missa diariamente durante 23 anos deve carregar uma grande culpa. Frankie pede-lhe conselhos num momento crucial, e o padre não responde com a ortodoxia da igreja, mas com uma visão sábia: "Se tu fizeres isso, estarás perdido, num lugar tão profundo que nunca te encontrarás." Repare também como Haggis põe Maggie a usar a palavra “congelada”, que é o que uma miúda sem instrução do interior poderia dizer, mas também é a única palavra perfeita que expressa o que mil não conseguiriam.

Hoje em dia, os filmes costumam ser feitos de efeitos e sensações. Este é composto por três pessoas e de como as suas ações surgem de quem elas são e por quê. Nada mais. Mas isso não é tudo?

Roger Ebert


quarta-feira, 3 de abril de 2024

33. La Jetée de Chris Marker


 

Título em Portugal: La Jetée

Realizador: Chris Marker

Ano: 1962

País: França

Argumentista: Chris Marker

Fotografia: Chris Marker e Jean-César Chiabaut

Elenco principal: Jean Négroni, Davos Hanich, Hélène Châtelain, Jacques Ledoux

Duração: 28 minutos

Quando pela primeira vez assisti ao filme “La Jetée” (1962), perdi algumas imagens e passagens da fala pausada e tranquila do narrador. A despeito da minha pouca atenção, a curta-metragem realizada pelo cineasta francês Chris Marker deixou-me a impressão de que acabara de assistir a uma dessas obras que nos arrematam pela sua atmosfera.
A história de um homem marcado por uma imagem da infância. O filme todo está envolvido por algum elemento etéreo, um leitmotiv desprendido, mas determinante, condutor. Esse motivo, esse ritornelo, essa frase musical recursiva e desconcertante é a memória. A ficção de Marker - Paris destruída por uma hecatombe, as experiências científicas, a viagem no tempo - é sobrepujada pelo riff da memória.
Nada distingue as lembranças de outros momentos, só mais tarde eles se fazem reconhecer pelas suas cicatrizes. “La Jetée” é uma ficção científica narrada por meio de fotografias. Talvez isso explique, para além do seu belo texto, porque é que a memória se torna tão obsessiva. Um dia feliz, mas diferente. Um rosto de felicidade, mas diferente. O ali-esteve dos fotogramas paralisados remete-me irremediavelmente para a diferenciação que a lembrança ou a projecção produzem. Acompanho a personagem em sua viagem, mas sou remetido a outros caminhos. Outros testemunhos auto-diferenciáveis, como o tempo.
Ela compreendeu que não se poderia escapar do tempo. E que esse momento que o obcecara era o momento da própria morte. A poética de Marker lembra-me que o cinema é memória, lembra-me também que o movimento está para além da acção. Algumas obras colocaram o cinema a servir uma tese, outras fizeram teses para servir o cinema. “La Jetée” é seguramente deste segundo grupo porque lança muitas questões utilizando os elementos da sua própria expressão.
Essa imagem, única imagem de paz a chegar ao tempo de guerra. Baudrillard, que também é fotógrafo, afirma que o fascínio de uma fotografia, o elemento mágico de uma fotografia, é que ela consegue preservar o não-ser das coisas, a ausência das coisas, a morte do objecto. Expulso a morte - e elimino a magia - de uma obra quando a interpreto, quando a saturo com qualquer espécie de significação e interpretação, transformando-a refém de seu próprio conteúdo. “La Jetée” - suas imagens, sua melodia, seu ritmo - não está para ser decifrado, mas vivido como uma experiência de tempo; como a audição de uma frase que me traz de volta notas e ritmos conhecidos, mas transformados, contaminados de um novo presente; como um passeio pela minha memória.

Texto (adaptado) de Paulo Carvalho

 

Blog  Luzia – Crítica de Cinema

38. Danser i Mørket de Lars von Trier

  Título em Portugal: Dancer in the Dark Realizador: Lars von Trier Ano: 2000 País: Dinamarca Argumentista: Lars von Trier Fotogra...